Guardiãs ainda sem recompensa

Deu na Página22… há 18 anos

Remunerar comunidades indígenas e tradicionais pelo serviço de proteger o capital natural brasileiro representaria uma revolução econômica, cultural e ambiental sem precedentes no planeta, já dizia Mary Allegretti em 2006. Para a antropóloga, somente uma política inovadora especificamente formulada para remunerar um serviço ambiental poderia manter vivas as áreas protegidas. Dezoito anos depois, o quanto avançamos nisso?

Por Amália Safatle

“A ideia de que populações tradicionais protegem os recursos naturais por deles depender para viver, lançada na década de 80, continua extraordinariamente viva (…). Não vem se concretizando, entretanto, a expectativa de que os produtos fornecidos pela floresta compensem financeiramente o serviço de extraí-los. Tal desequilíbrio tem uma causa estrutural: a ausência de compensação pelos serviços ambientais que essas comunidades prestam à sociedade. (…) Mas nenhum país ainda enfrentou esse desafio na escala que poderia ocorrer no Brasil: remunerar comunidades indígenas e tradicionais pelo serviço de proteger nosso capital natural representaria uma revolução econômica, cultural e ambiental sem precedentes no planeta”.

O artigo “Guardiãs sem recompensa“, escrito pela antropóloga e doutora em desenvolvimento sustentável, Mary Allegretti, caberia perfeitamente na mídia de hoje, não fosse por um detalhe: foi publicado em 2006, há 18 anos, na edição número 1 da Página22.

Edição número 1 da Página22, lançada em setembro de 2006.
Ilustrações: Sandro Castelli

Segundo monitoramento do Imazon, divulgado em janeiro passado, as áreas protegidas da Amazônia (Terras Indígenas e Unidades de Conservação) apresentam o menor desmatamento em nove anos, o que só vem confirmar aquilo que Alegretti anunciava lá atrás.

Para a organização, “a criação de áreas protegidas tem sido uma das estratégias mais efetivas eficazes contra o desmatamento na Amazônia. Essas áreas, que ocupam cerca de 44% da Amazônia, exercem um papel essencial na conservação dos recursos naturais (especialmente, a biodiversidade) e manutenção dos serviços ambientais, além de garantir os direitos das populações tradicionais e indígenas”.

Mas o desafio de manter essas áreas persiste, conforme antecipado por Alegretti:

“Na primeira década de vigência dessa política (1990-2000), a garantia dos territórios era suficiente.  Hoje, é diferente.  Uma nova geração já nasceu em áreas protegidas e anseia por investimentos que vão muito além dos convencionais: qualificação profissional na gestão dos recursos, agregação de valor, comunicação e inserção no mundo global, sem deixar a floresta.”

“Esse objetivo somente será alcançado mediante uma política inovadora especificamente formulada para remunerar um serviço ambiental.  Mas para isso é necessário um novo pacto entre o Estado, a comunidade e a sociedade.  O Estado precisa comprometer-se a proteger os territórios e realizar investimentos básicos em saúde, educação e infraestrutura social; a comunidade, a proteger os recursos de acordo com regras definidas para esse fim; e a sociedade, a realizar parcerias produtivas que valorizam os ativos florestais e da biodiversidade”, escreveu ela.

Na sua opinião, o que avançou em relação a isso, nos últimos 18 anos?

Leia o artigo completo a seguir:

Guardiãs sem recompensa

Por Mary Allegretti

A idéia de que populações tradicionais protegem os recursos naturais por deles depender para viver, lançada na década de 80, continua extraordinariamente viva, como mostra o crescente número de unidades de conservação criadas para esse fim.  Não vem se concretizando, entretanto, a expectativa de que os produtos fornecidos pela floresta compensem financeiramente o serviço de extraí-los.  Tal desequilíbrio tem uma causa estrutural: a ausência de compensação pelos serviços ambientais que essas comunidades prestam à sociedade.

Serviços ambientais são benefícios que a natureza viabiliza para a sociedade e que resultam do bom funcionamento dos ecossistemas.  É possível garantir esse serviço por meio de áreas de proteção integral, de uso sustentável e/ou por intermédio de atividades econômicas que valorizam ativos ambientais.

Na primeira opção, o Estado tem a obrigação de proteger; nas outras duas é auxiliado nessa função pelos habitantes dessas áreas ou por empreendedores privados.  Há, sempre, um custo na manutenção dos serviços e é a dificuldade em valorá-lo uma das razões pelas quais se destrói tanto o ambiente.

A comparação entre duas atividades econômicas clássicas – a agricultura e o extrativismo – permite uma clara compreensão do dilema.

Um produtor de soja, algodão ou café insere nos custos de produção o valor da terra, adquirida ou arrendada – investimento prévio sem o qual a atividade não se realiza -, e está seguro de que o mercado contabiliza esse custo no preço do produto.  Um extrativista, castanheiro ou seringueiro, historicamente comercializa seus produtos apenas pelo valor de reprodução da sua força de trabalho, sem que nunca fosse contabilizado o valor do estoque de capital natural de um castanhal ou seringal no preço do produto.  O fato de o extrativismo não ser uma atividade rentável não deriva de um defeito intrínseco a essa atividade, mas do fato de o mercado não atribuir valor ao capital natural, base da atividade.

O extrativismo sustentável, da forma como é feito tradicionalmente na Amazônia, mantém os estoques de capital natural.  São serviços ambientais gerados pelos sistemas ecológicos.  Os seringueiros, castanheiros e ribeirinhos são, assim, mantenedores de estoques de capital natural e, na medida em que sua atividade econômica depende da reprodução da natureza, são provedores de serviços ecológicos.

Se o mercado convencional não contabiliza o valor dos estoques e serviços, é preciso uma estratégia política para alterar essa situação: ou uma intervenção do Estado ou uma alteração nas regras do mercado.  Ou ambas.

Pacto pela modernidade

Comunidades utilizam recursos naturais de forma sustentável quando deles dependem para sua própria reprodução.  Para que isso aconteça, há um conjunto de pré-requisitos: os territórios devem estar protegidos por lei; deve haver segurança de que não serão expulsos ou ameaçados por forças econômicas ou políticas externas e a oferta de serviços básicos de educação, saúde, informação precisa ser permanente.

Ou seja, a conservação dos recursos naturais por comunidades é fruto de um pacto com o Estado: elas assumem a função de guardiães dos recursos naturais em troca de benefícios sociais e econômicos equivalentes à função desempenhada.  É por isso que reivindicam investimentos que permitam a modernização de sua atividade econômica, mais do que a melhoria na qualidade de vida.

Esse pacto, na prática, tem sido parcialmente cumprido: territórios vêm sendo protegidos sem a contrapartida de investimentos sociais, muito menos produtivos.  Na primeira década de vigência dessa política (1990-2000), a garantia dos territórios era suficiente.  Hoje, é diferente.  Uma nova geração já nasceu em áreas protegidas e anseia por investimentos que vão muito além dos convencionais: qualificação profissional na gestão dos recursos, agregação de valor, comunicação e inserção no mundo global, sem deixar a floresta.

Esse objetivo somente será alcançado mediante uma política inovadora especificamente formulada para remunerar um serviço ambiental.  Mas para isso é necessário um novo pacto entre o Estado, a comunidade e a sociedade.  O Estado precisa comprometer-se a proteger os territórios e realizar investimentos básicos em saúde, educação e infra-estrutura social; a comunidade, a proteger os recursos de acordo com regras definidas para esse fim; e a sociedade, a realizar parcerias produtivas que valorizam os ativos florestais e da biodiversidade.

Experiências embrionárias já existem: a Lei Chico Mendes no Estado do Acre autoriza o executivo a subsidiar o quilo de borracha natural produzida por seringueiro, medida voltada para agregar valor ao seringal nativo.  O Proambiente, programa proposto por agricultores familiares do Pará, busca compensar comunidades rurais pela transição de uma agricultura predatória para sustentável.

Mas nenhum país ainda enfrentou esse desafio na escala que poderia ocorrer no Brasil: remunerar comunidades indígenas e tradicionais pelo serviço de proteger nosso capital natural representaria uma revolução econômica, cultural e ambiental sem precedentes no planeta.

*Mary Allegretti é antropóloga e doutora em Desenvolvimento Sustentável

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