Moradores do São Bernardo reunidos para buscar soluções comuns a pressões e ameaças feitas por fazendeiro, que ambiciona seringal para manejo madeireiro (Foto: Divulgação CPT)

Famílias seringueiras de Rio Branco resistem às investidas de fazendeiros

Publicado originalmente nO Varadouro,

por Fábio Pontes, dos varadouros de Rio Branco

Localizado às margens do Riozinho do Rola, na região da Transacreana, Seringal São Bernardo é ambicionado para a expansão da agropecuária e da exploração madeireira. Por conta disso, as 42 famílias que nele vivem sofrem todo tipo de pressões por fazendeiro que afirma ser dono da área. Há denúncias de tortura de seringueiros por parte de policiais, que atuariam a mando do fazendeiro

Uma realidade social que marcou o processo de formação da historiografia acreana nas últimas cinco décadas. Ao transformar a Amazônia num grande latifúndio nas mãos de poucos, mas poderosos donos de terra, a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) entregava os antigos seringais falidos cheios de famílias nas mãos dos “paulistas”. Para elas, não havia opção: ou iam morar nas periferias de Rio Branco ou seriam enterradas ali mesmo – mortas pela jagunçada. A capital que nasceu e cresceu a partir de um seringal, agora era transformada em pasto.

Porém, o Seringal São Bernardo resistiu, assim como as famílias que o ocupavam desde o começo da segunda metade do século passado. É o caso das irmãs Cosma da Conceição Bezerra, 48 anos, e Maria Lucineide da Conceição Bezerra, 45 anos. Elas são a face da resistência das famílias de seringueiros que sofrem todo tipo de pressão e ameaças feitas pelo fazendeiro que afirma ser dono do Seringal São Bernardo. Elas foram “vendidas” pelo antigo seringalista (o patrão) com a área de mata e tudo. Juntas com outras três mulheres, elas lideram o movimento de resistência – os novos “empates” – dentro das colocações.

A floresta permanece de pé, e outra parte já virou pasto. Ao todo, o Seringal São Bernardo possui 17 mil hectares divididos pelas colocações. Mesmo ocupando a região há mais de cinco décadas, elas podem se ver expulsas (indo parar nas periferias) pelos “novos patrões” – ou os mesmos latifundiários da Amazônia de 1970. Até semanas atrás, a área era reivindicada pelo fazendeiro Mozart Marcondes Filho. Porém, a Justiça reconheceu a posse para Luiz Manzoni. Ele afirma ter vendido a Fazenda Nova União para Marcondes Filho, mas que o pagamento nunca foi concluído. Assim, a Justiça rompeu o contrato de compra e venda, devolvendo a posse para Manzoni.

Maria Lucineide: filha de seringueiro é uma das líderes da resistência no seringal: nascemos, fomos criadas e vamos morrer aqui (Foto: Mário Manzi/CPT)

Em meio ao litígio estão as 42 famílias seringueiras, cujos antepassados ocupam a região ao menos desde 1940, quando uma nova leva de migrantes nordestinos veio para a Amazônia como soldados da borracha, durante a Segunda Guerra Mundial. Portanto, elas já ocupavam a Floresta Amazônica muito e muito antes da compra de enormes glebas pelos latifundiários. Nada disso, todavia, assegura o direito de posse para as famílias seringueiras. O que vale mesmo é o poderio econômico dos “novos donos do Acre”, como Varadouro já denunciava no final da década de 1970.

Essa mudança de propriedade do Seringal São Bernardo de um fazendeiro para outros não apaga o passado de conflitos e pressões realizadas por Mozart Marcondes Filho, e tampouco é garantia de paz e tranquilidade para as famílias que lá sobrevivem.

“Nós nascemos e nos criamos no seringal e vamos morrer lá. Ninguém vai tirar a gente de lá”, afirma Cosma da Conceição. Varadouro conheceu as irmãs e a história de resistência no Seringal São Bernardo em setembro durante evento da Comissão Pastoral da Terra em Rio Branco. A CPT é a entidade que presta assistência jurídica e social às famílias de seringueiros, levando ao conhecimento do Ministério Público e da Secretaria de Justiça Segurança Pública todas as denúncias de abusos de autoridade cometidas por policiais na região.

As famílias acusam policiais civis e militares do Acre de atuarem como o braço armado do fazendeiro que se apresentava como dono da gleba. Entre as denúncias estão os crimes de tortura, ameaças, intimidações e apreensões ilegais da produção extrativista dos seringueiros. Um dos casos, por sinal, teve sua primeira audiência na Justiça nesta terça-feira, 7.

Trata-se da denúncia de tortura com “surra de terçado” praticada por PMs contra seringueiros. Em 2021, quatro sargentos da PM espancaram com golpes de terçado dois moradores do seringal por estarem quebrando castanha. Os moradores acusam os militares de terem agido a mando do fazendeiro.

Outra situação, em 2020, foi a apreensão de 170 latas de castanha que a família das irmãs Cosma e Maria iriam trazer para vender no mercado de Rio Branco. A castanha já estava na embarcação pronta para descer o rio quando policiais civis da Delegacia da Baixada da Sobral fizeram a retenção da carga alegando se tratar de roubo. O motivo? A castanha fora extraída da área do fazendeiro. Os dois filhos de Cosma e Maria, mais o irmão delas, foram presos. Segundo elas, os agentes agiram apenas para beneficiar o fazendeiro.

O caso mais recente, de agosto do ano passado, envolveu policiais militares do Batalhão de Polícia Ambiental (BPA), que foram até o seringal para apurar a denúncia de extração ilegal de madeira. De acordo com Cosma Conceição, os agentes agrediram fisicamente o seu filho. Ela afirma ter feito a retirada da madeira para reconstruir sua casa destruída por um incêndio enquanto ela estava em Rio Branco. Quando voltou da cidade, a casa estava transformada em cinzas. Até hoje ela diz não ter tido acesso ao laudo pericial sobre a causa do incêndio.

Porém, o drama mais recente vivido pela seringueira Cosma Conceição é o desaparecimento de um de seus filhos, ocorrido em 2021. À época do sumiço, Ricardo Bezerra dos Santos estava com 23 anos de idade. Ele tinha ido a Rio Branco para fazer o saque do benefício social do paí. Seus últimos movimentos registrados são a passagem por um hotel da cidade e a compra no supermercado. Testemunhas disseram o ter visto pela última vez já às margens do ramal de acesso ao São Bernardo. Desde então nunca mais foi visto. Cosma fez o boletim policial. Já são dois anos sem respostas.

Cosma Conceição: filho desaparecido e casa queimada. Seringueira diz que pressões de fazendeiros não forçarão saída das famílias (Mário Manzi/CPT)

Muitas pressões e ameaças

Marcas de tortura feita por PMs em seringueiro (Foto: CPT)

O acesso ao Seringal São Bernardo é possível chegar tanto por via terrestre quanto fluvial. De carro ele é acessível pela estrada Transacreana. Num ramal localizado no quilômetro 45, onde é preciso percorrer mais 10 quilômetros até chegar às margens do Riozinho do Rola. O seringal fica na outra margem do manancial, sendo a travessia feita por catraias. As famílias que vivem nas colocações mais afastadas das margens só podem fazer o caminho a pé por varadouros. Não há ramais para passagem nem de motos. “No inverno a lama dá nas canelas”, diz Maria Lucineide.

No rio a carga é colocada na embarcação para ser vendida no mercado de Rio Branco. Até chegar ao centro, descendo o riozinho do Rola e o rio Acre é um dia e meio de viagem. A falta de uma ponte conectando o seringal à margem do ramal que dá acesso à Transacreana faz a viagem que poderia ser realizada em questões de horas, transformar numa jornada fluvial.

As famílias acusam o fazendeiro de usar de sua influência política e econômica para não permitir a construção de uma ponte pelo Departamento de Estradas e Rodagens do Acre (Deracre), assim como a abertura de um ramal. Ele alega que o seringal é um regão de conflito fundiário, em litígio na Justiça. A falta de um ramal deixa as famílias sem acesso à energia elétrica. Elas já procuraram a concessionária de energia para pedir a instalação de placas solares, mas o fazendeiro também intervém para impedir, usando o mesmo argumento.

Para as irmãs Cosma e Maria Lucineide, ao impedir a chegada de benfeitorias ao seringal e fazer intimidações por meio de policiais, Mozart Marcondes tenta forçar as famílias a abandonar o seringal. O interesse? Colocar em prática plano de manejo madeireiro. O seringal é uma das últimas regiões no entorno da capital com abundância de espécies madeireiras.

“Ele quer vencer a gente no cansaço. Ele acha que se não chegar a benfeitoria lá uma hora a gente vai querer sair. Não sabe ele que a nossa vida crescemos no meio da mata, enfrentando todo tipo de dificuldade. Às vezes quando a gente era pequena tinha comida pra comer, e muitas vezes não tinha. Muitas vezes tinha farinha e muitas vezes não. Cansamos de comer banana que era a única coisa que tinha quando a gente era criança”, relata Cosma Conceição.

“O seringal é bonito, a mata é bonita. Terra boa, de tudo o que se planta nasce. A ambição dele é a madeira. Ele não quer abrir pastagem pra boi. Ele já tem muita área derrubada, mas não é usada. O negócio dele é fazer manejo [madeireiro]”, completa Cosma. Apesar de ele não ser o mais dono oficial da terra, como reconhecido pela Justiça, as ambições para a exploração econômica – leia madeireira – do Seringal São Bernardo não se findam.

E dessa forma, na zona rural da capital política e econômica do Acre, bem perto do centro do poder, um seringal ainda simboliza as mazelas ocasionadas pela ditadura militar para a Amazônia brasileira, quando a floresta era vendida com suas populações tradicionais lá dentro. Populações que, 50 anos depois, continuam a sofrer com os mesmos problemas, incluindo a invisibilidade. Mesmo com todas as dificuldades, as famílias do Seringal São Bernardo resistem às pressões dos “novos donos do Acre”. São os “empates” do século 21.

Com 17 mil hectares, Seringal São Bernardo abriga 42 famílias descendentes dos “soldados da borracha” (Foto: Divulgação CPT)

O que dizem as partes envolvidas

A reportagem do Varadouro procurou todas as partes envolvidas no caso do Seringal São Bernardo. No caso do fazendeiro Mozart Marcondes Filho não foi possível localizá-lo, tampouco seu advogado. A Polícia Militar afirmou ter aberto procedimentos disciplinares em ambos os casos que envolvem membros da corporação nas denúncias de abuso de autoridade no Seringal São Bernardo, e que foram encaminhados para a Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial, do Ministério Público Estadual.

“Insta enfatizar que a Polícia Militar é uma instituição legalista, que zela pelo bem-estar social e não coaduna com nenhum tipo de violação aos direitos humanos, tendo como umas de suas diretrizes a polícia comunitária, além de projetos sociais que buscam aproximar a sociedade da Polícia”, diz nota da assessoria.

A assessoria de comunicação da Polícia Civil não realizou nenhuma manifestação formal por escrito ao jornal Varadouro. O mesmo aconteceu com a Secretaria de Justiça e Segurança Pública até o presente momento.

 

Esta reportagem foi publicada originalmente no jornal O Varadouro, acesso o conteúdo na íntegra AQUI

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