Até quando deixaremos a Amazônia sangrar em árvores e vidas?

Por Daniela Bonamigo Zupiroli

Há dias convivemos com a angústia de não saber o que aconteceu com Bruno Pereira e Dom Phillips. O indigenista licenciado da Funai e o jornalista inglês engajado nas causas ambientais amazônicas desapareceram na região do Vale do Javari após receberem ameaças relacionadas ao trabalho que desenvolvem em defesa dos povos indígenas.

O sentimento de apreensão se mistura com a indignação de ver se repetir um cenário dramático, marcado pela violência e pela ausência do Estado, o qual, entretanto, já era anunciado. Em 2021, o relatório The Last Line of Defense, publicado pela ONG Global Witness, apontou o Brasil como o quarto país em assassinatos de líderes ambientais, ficando atrás apenas de Colômbia, México e Filipinas. Àquele ano, 20 ativistas perderam suas vidas, entre eles o indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau, que, juntamente com um pequeno grupo, monitorava a ação de invasores dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia e denunciava extrações ilegais de madeira. Mais de dois anos depois de seu homicídio, Ari permanece injustiçado, não se sabe nem mesmo o nome do autor do crime.

Quem conhece a realidade da Amazônia sabe que esse não é um fenômeno novo. A década de 80 foi especialmente sangrenta na região, gerando comoção mundial e impactando grande parte dos rumos da política ambiental brasileira. Em 1988, três dias antes do natal, Chico Mendes foi assassinado em sua própria casa, em Xapuri, Acre. Oito anos antes, em 21 de julho de 1980, Wilson Pinheiro já havia sido vítima do mesmo destino, provocado por causas semelhantes: a determinação de manter a floresta em pé e garantir a continuidade da vida em seus territórios extraindo dali as bases que mantém seu modo de vida.

Há todo um contexto, que definitivamente não é novo, por trás dos recorrentes episódios de violência contra líderes indígenas, extrativistas e ativistas ambientais na Amazônia. Historicamente, as dinâmicas do desmatamento respondem por boa parte dos conflitos socioterritoriais na região, os quais ensejam, por sua vez, ameaças, homicídios tentados ou consumados, além de outros crimes.

Segundo Rolemberg e Lacerda (2022), a “pistolagem”, feição que assumem os crimes de homicídio praticados por um contratado a mando de um contratante, já é parte da linguagem da violência e da disputa por terras envolvendo atores implicados ou interessados em práticas de degradação da floresta e defensores dos territórios tradicionais, de seus recursos e de seus direitos.

Entretanto, há um elemento novo, surgido na última década: o crescimento dos crimes de facções associados ao controle do tráfico de drogas e armas. O afluxo de dinheiro e de pessoas na região sem o correspondente investimento em ações de prevenção e combate ao crime, vem há décadas aquecendo o comércio de drogas e promovendo a estruturação de grupos criminosos em disputas por pontos de venda e rotas de transporte (OLIVEIRA, 2017).

Esse novo cenário, de expansão do tráfico de drogas e armas na Amazônia e de violência contra lideranças indígenas, extrativistas, e seus defensores, foi resumido por Mary Allegretti, presidente do IEA:

“Dia de luto hoje, revivendo a barbárie. A imagem que tenho na memória da Amazônia que eu conheci três décadas atrás é aquela que você navega pelos rios e vai passando por casinhas isoladas na beira do barranco, com açaizais em volta e a floresta ao fundo, mostrando que ali morava um ribeirinho ou um seringueiro com suas famílias, vivendo e protegendo aquele lugar. Desde que o narcotráfico se instalou na Amazônia essas cenas clássicas de convivência humana e ambiente, sumiram. Hoje é muito perigoso morar na beira do rio e, muitas vezes, mesmo quando reconstroem suas casas mais escondidas na floresta, não conseguem evitar as ameaças de gente que circula, alicia os filhos e expulsa moradores de suas casas. Vai ser muito difícil colocar ordem na floresta. Mas não é impossível se tivermos um governo determinado a impor a lei onde hoje domina a criminalidade.”

O Brasil ocupa, atualmente, o 4º lugar no ranking de homicídios de lideranças relacionadas a causas socioambientais, porém, não existem estatísticas organizadas e publicizadas sobre os episódios de violência contra esses atores no país. Ainda que exista o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas¹, no qual lideranças ameaçadas podem pleitear ingresso, o processo de inclusão não é automático e passa por diferentes etapas, de modo que os números do programa não refletem a realidade do contingente de lideranças ameaçadas. Em relação a essa política é notório que, em outubro de 2017, pouco mais de 82% dos inseridos eram agentes que atuavam na defesa dos direitos à terra, território e meio ambiente (ROLEMBERG e LACERDA, 2022).

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) realiza um levantamento mais detalhado sobre a violência contra lideranças e integrantes de movimentos sociais. Tradicionalmente, a cada ano são quantificados de maneira abrangente os conflitos no campo no Brasil por essa organização, sendo diferenciados entre conflitos por terra, por água (relativos, em sua maior parte, à construção de barragens, hidrelétricas e obras de irrigação mecanizada) e conflitos trabalhistas (ocorrência de trabalho escravo).

De acordo com Rolemberg e Lacerda (2022), os relatórios da CPT são considerados os instrumentos mais completos e confiáveis de que se dispõe no país a respeito dos conflitos na Amazônia. Nestes documentos está, de certa forma, conformado o contexto de violência que se perpetua na região por meio de perseguições diretas e deslegitimações de lideranças, as quais combinadas à leniência do Estado, permitem que agentes envolvidos em crimes ambientais e outras práticas criminosas sejam exitosos em suas ações.

Aqui, já falamos do caso de Ari-Eu-Wau-Wau e da falta de justiça imputada ao crime que levou à morte uma importante liderança indígena. Infelizmente, no Brasil, esse caso não é isolado. Inexistem pesquisas longitudinais e estudos de fluxo do sistema de justiça disponíveis para medir a seletividade, morosidade e impunidade dos crimes contra a vida de lideranças e integrantes de movimentos sociais; entretanto, ao considerar os registros presentes nos relatórios da CPT, estima-se que dos 1.496 casos de homicídios em contexto de conflitos no campo ocorridos entre 1985 e 2019, envolvendo 1.973 vítimas assassinadas, somente 120 casos foram julgados, com a condenação de apenas 35 mandantes e 106 executores (CABRAL, 2020). Ressalta-se que, mesmo nos casos que foram levados ao júri e condenados, ainda assim, isso não significou que todos os envolvidos tiveram aplicação da pena, especialmente no caso de mandantes, os quais utilizam de suas condições financeiras para explorar recursos admitidos em leis e jurisprudências favoráveis, mantendo-se em liberdade até o trânsito em julgado ou prescrição da ação penal.

Tudo isso se torna mais grave quando analisamos o contexto dos últimos anos, período em que medidas concretas de fragilização de órgãos ambientais têm sido adotadas em combinação com declarações formais e institucionais contrárias aos direitos indígenas e à proteção do meio ambiente. O anúncio de medidas supressoras de garantias sociais e de direitos, ainda que não se concretizem, produzem efeitos no sentido de informar que haverá tolerância e leniência em relação a práticas de desmatamento, garimpagem ou mesmo violência contra lideranças. Barretto Filho (2020), ao analisar as tendências do governo atual relativas ao meio ambiente e aos direitos de povos indígenas e populações tradicionais, apontou a íntima relação entre posicionamentos públicos e medidas governamentais e a sensação de um desbloqueio quase que absoluto das práticas ilegais que marcam a ocupação territorial e as atividades econômicas em espaços da Amazônia Legal brasileira.

Esse cenário permite afirmar que, para além da combinação de formas de violência, setores implicados em atividades de destruição da Amazônia contam, hoje, não apenas com a seletividade, morosidade e impunidade do sistema de justiça, mas, também, com a criação de novos dispositivos legais a seu favor, os quais podem, e normalmente o fazem, estimular ações violentas perpetuadas contra lideranças ambientais e populações tradicionais (BRITO et al., 2019).

Voltando ao caso de Bruno e Dom, ainda que não se tenha a confirmação oficial da tragédia que pode ter se abatido sobre eles, é possível vislumbrar como esse desaparecimento não se encontra isolado no contexto atual amazônico. Continuamos aguardando, mesmo que cada dia menos esperançosos, por um desfecho positivo, porém, a história nos mostra que o medo vem vencendo a esperança para aqueles que atuam na defesa de suas florestas, seus territórios e modos de vida e dos que optam por apoiá-los. A pergunta que fica é: até quando deixaremos a Amazônia sangrar em árvores e vidas?

¹Política pública que oferece proteção a pessoas ameaçadas de morte em função de sua atividade política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETTO FILHO, H.T. Bolsonaro, meio-ambiente, povos e terras indígenas e de comunidades tradicionais: uma visada a partir da Amazônia. Cadernos de Campo 29 (2): 1–9, 2020.

BRITO, B. et al. Stimulus for land grabbing and deforestation in the Brazilian Amazon. Environmental Research Letters 14: 1–8, 2019.

CABRAL, D. Não sejamos cúmplices! Violência e impunidade no campo em 2019. In Conflitos no Campo Brasil 2013, ed. Comissão Pastoral da Terra, 172–9. Goiânia: CPT Nacional, 2020.

GLOBAL WITNESS. The Last Line of Defense: The industries causing the climate crisis and attacks against land and environmental defenders. Setembro de 2021. Disponível em: https://www.iccaconsortium.org/index.php/2021/09/17/report-land-and-environmental-defenders-are-our-last-line-of-defense-against-climate-breakdown/. Último acesso em 14/06/2022.

OLIVEIRA, A.C. Belo Monte: violências e direitos humanos. Belém: Super-Cores, 2017.

ROLEMBERG, I. e LACERDA, P. Violências contemporâneas contra lideranças na Amazônia brasileira: enquadramentos morais, legais e associativos. Anuário Antropológico, v. 47, n.1, pp. 87-106 (janeiro-abril/2022). Brasília: Universidade de Brasília, 2022.

Um comentário sobre “Até quando deixaremos a Amazônia sangrar em árvores e vidas?

  • Parabéns Daniela, pela sua abordagem sobre os acontecimentos sobre a violência, sócio ambiental, droga e segurança na Amazônia !!!

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