Morador do Lago do Puraquequara durante a seca de 2023. Foto: Alberto César Araújo

A seca de 2023 na Amazônia terá muito estrago pela frente

Artigo de opinião originalmente publicado no site da Amazônia Real,

por Rosimeire Araújo Sila e Philip Martin Fearnside

A seca de 2023

A seca de 2023 na Amazônia faz parte da crise climática, e a tendência é para isto se agravar, tanto no decorrer do atual evento como na frequência e intensidade de eventos deste tipo no futuro. Uma mancha na parte leste do Oceano Pacífico equatorial já está bem quente, ainda mais do que era durante o El Niño “Godzilla” de 2015-2016 (tipo “El Niño Oriental”). Esta macha está se alargando, chegando à região central do Pacífico, que é a região que provoca El Niños do tipo que aconteceu em 1982-1983 (tipo “El Niño Central”). Os dois tipos de El Niño afetam a parte norte da Amazônia, e o El Niño Oriental afeta também áreas no suldoeste da Amazônia, como aconteceu em 2015, e este ano com vazões baixíssimos nos rios Madeira e Purus. Ao mesmo tempo, temos uma mancha de água quente no Oceano Atlântico norte tropical, o que implica em seca na parte suldoeste da Amazônia, como aconteceu em 2005 e 2010. A previsão é para o início das chuvas atrasar com relação ao normal, e para uma época  chuvosa mais seca do que o normal. Isto pode resultar não só em um vazante extremo este ano, mas também níveis baixos em 2024.

A seca de 2023, que está longe de ter chegado ao seu fim, já provocou estragos dramáticos. Morreram 154 botos no Lago de Tefé [1], onde a temperatura da água chegou a 39 °C, ou dois graus acima da temperatura do corpo humano [2].  Morreram muitos peixes devido ao aumento da temperatura da água [3], o que mata tanto pelo efeito direto da temperatura como por diminuir o conteúdo de oxigênio na água. Ouve impactos dramáticos nas populações humanas devido à isolamento de comunidades, a impossibilidade de transporte fluvial em muitos locais, e a perda dos meios de sustentação por pesca, agricultura, etc. [4].

Previsão para Amazônia em 2023-2024

Oceano Pacífico  – El Niño Oriental seguido por El Niño Central.

No Oceano Pacífico, observou-se uma sucessão de eventos climáticos notáveis: primeiro, o El Niño Oriental, seguido pelo El Niño Central. Este ano, a seca na da Amazônia foi agravada pela influência do El Niño Oriental, caracterizada pelo aquecimento na parte leste do Oceano Pacífico tropical, nas áreas conhecidas como “Niño 1+2” e “Niño 3” (Figura 1). Este tipo de El Niño atinge, além da parte norte da Amazônia, uma extensão ao sul, levando a vazões baixas nas afluentes como os rios Madeira e Purus, como aconteceu em 2015 e agora em 2023. O leste do Pacifico já estava quente em junho de 2023 (Figura 2). Essa influência persistiu mesmo durante a estação seca anterior às contribuições do El Niño Central, como aquecimento no centro do Oceano Pacífico tropical Oceano Pacífico tropical, na região conhecido como ´”Niño 3.4”.

Figura 1. Localização das regiões no Oceano Pacífico equatorial dos índices de eventos de El Niño [5]. O “El Niño Oriental” tem aquecimento da água superficial na regiões 1+2 e 3 [6]; e o “El Niño Central” tem aquecimento na região 3.4, que abrange partes das regiões 3 e 4 [7, 8].
Figura 2. Anomalias (divergências com relação à média) e da temperatura da superfície do mar no Oceano Pacífico de 10 a 17 de junho de 2023 [9].
Desde junho de 2023, o aquecimento se desloca em direção à parte central do Pacífico, contribuindo para a formação do El Niño Central, que deve atingir sua maturação em dezembro de 2023 e enfraquecer até junho-julho de 2024. A água quente na parte central e oeste do Pacífico já configura um El Niño Central (Figura 3). O El Niño Central de 1982 levou a mortalidade de árvores em pé por falta d’água e a incêndios florestais na Amazônia [10]. A morte de mais de 200 mil pessoas em Etiópia e paises vizinhas naquele El Niño e é lembrado pela música “Nós somos o mundo” de Michael Jackson que foi escrito para arrecadar doações para as vítimas. O El Niño Central de 1997 é lembrado pelo Grande Incêndio de Roraima, que queimou 12,5 ± 1,5 mil km2 de florestas e que, apesar da ajuda até de bombeiros de Argentina, só apagou com a chegada das chuvas em março de 1998 [11].

Figura 3. Temperatura da superfíce do mar (SST) para as semanas de 02 de agosto a 18 de outubro de 2023. [12]
Um fenômeno que antecede grandes eventos El Niños é o rebaixamento do termoclino no oeste do Oceano Pacífico no ano anterior ao evento, aumentando o volume de água quente e, portanto, o conteúdo de calor armanezanda neste parte do oceano.  O conteúdo de calor na parte oeste do Oceano Pacific chegou a um recorde no último trimestre de 2022, sendo maior ainda do que nos anos anteriores aos super-El Niños de 1982 e 1997 [13]. O aviso para um El Niño neste ano foi em dezembro de 2022 [14], e no início de junho de 2023 ele chegou [15].

Esse padrão meteorológico sugere atrasos na temporada de chuvas na Amazônia, com redução das precipitações nas regiões central, norte e leste. A probabilidade das temperaturas quentes no Oceano Pacifico voltar para níveis “normais” é mínima até o trimestre abril-maio-junho de 2024 (Figura 4). A demora, por sua vez, impacta na regulação dos níveis de água nos principais reservatórios fluviais, levando a uma diminuição das represas nas águas das subbacias.

Figura 4. Probabilidade de ter El Niño com água quente no centro do Oceano Pacifico, por trimestre de setembro de 2023 a julho de 2024 [16].
Com a redução das chuvas na estação chuvosa 2023-2024, e ainda com os reservatórios abaixo do nível devido à significativa estiagem de 2023, espera-se que os níveis de água dos reservatórios das barragens fiquem abaixo da média durante a estação seca de 2024, levando desafios significativos ainda para o ano seguinte.

Oceano Atlântico – Aquecimento do Atlântico Norte tropical

Além da influência do El Niño, os efeitos na região amazônica também são agravados pelo aquecimento anômalo no Atlântico Tropical Norte. Há uma relação complexa entre El Niños do Pacífico e o aquecimento do Atlântico Norte, e entre estes fenômenos e as secas em diferentes partes da Amazônia [17]. No Oceano Atlântico, observa-se em outubro de 2023 um aquecimento no Atlântico Tropical Norte e frio ou neutralidade no Atlântico Tropical Sul, indicando que já formou um dipolo no Atlântico (Figura 5). Um dipolo leva a secas no Acre e outras partes do suloeste da Amazonia, como aconteceu em 2005 e 2010 [18].

Figura 5. Média das anomalias de temperatura da superfície do mar no Pacífico e Atlântico Tropical para 24 de setembro a 21 de outubro de 2023 [19].
Esse padrão de aquecimento do Atlântico Tropical Norte persiste durante a estação chuvosa da Amazônia, resultando no confinamento da Zona de Convergência Intertropical em latitudes mais ao norte do que o habitual. Isso causa atrasos e compromete a estação chuvosa nas regiões norte e nordeste da América do Sul. A partir do período de junho, julho e agosto, quando a influência do El Niño enfraquece e o dipolo no Atlântico tropical se estabelece, esperasse que as chuvas são reduzidas, principalmente durante a transição para a estação seca na porção sul e sudoeste da Amazônia. A previsão até junho de 2024 (Figura 6) indica a permanencia de um dipolo em todo este tempo, o que é uma notícia grave para o Acre e áreas vizinhas.

Figura 6. Previsão de temperatura da superfície do mar no Pacífico e Atlântico Tropical [20].
Dado que os efeitos das duas bacias oceânicas ocorrem em diferentes partes da Amazônia, é possível prever um cenário de secas que variam de moderadas a intensas em grande parte da região amazônica, com impactos mais acentuados no sul e sudoeste durante a transição para a estação seca 2024 e na porção central e leste durante a estação seca desse mesmo ano. A previsão de seca para novembro de 2023 a janeiro de 2024 (Figura 7) mostra quase toda a Amazônia com forte seca, tanto no norte como no sul da região.

Figura 7. Previsão para chuvas de novembro de 2023 a janeiro e 2024 [21].

Notas

[1] ClimaInfo. 2023a. Seca se intensifica e rio Negro registra novo recorde negativo de nível da água. ClimaInfo, 23 de outubro de 2023.

[2] Corrêa, G.  2023. Seca no Amazonas: 153 botos e tucuxis são achados mortos no Lago Tefé. Radio Agencia Nacional, 18 de outubro de 2023.

[3] Braz-Mota, S. & T. da Mota e Silva. 2023. Água a 38°C, peixe podre e jacaré morto: Cientistas mostram colapso no AM. Ecoa, 17 de outubro de 2023.

[4] ClimaInfo. 2023b. Adaptação: Amazonas estuda deslocar comunidades por causa da mudança climática. ClimaInfo,06 de outubro de 2023.

[5] NCAR (National Center for Atmospheric Research). 2023. Nino SST Indices (Nino 1+2, 3, 3.4, 4; ONI and TNI). NCAR Climate Data Guide.

[6] Rasmusson, E.M. & T.H. Carpenter. 1983. ENSO diversity and the recent appearance of Central Pacific ENSOClimate Dynamics 54: 413–433.

[8] Kao, H.Y. & J.Y. Yu, 2009. Contrasting Eastern-Pacific and Central-Pacific types of ENSOJournal of Climate 22: 615–632.

[9] INMET (Instituto Nacional de Meteorologia). 2023. Situação do fenômeno El Niño no Oceano Pacífico Equatorial em junho de 2023.

[10] Fearnside, P.M. 1985. Mudança ambiental e desmatamento na Amazônia brasileira. Tradução de:  Environmental change and deforestation in the Brazilian Amazon. pp. 70‑89. In: J. Hemming (ed.) Change in the Amazon Basin: Man’s Impact on Forests and Rivers. Manchester University Press, Manchester, U.K. 222 pp.

[11] Barbosa, R.I. & P.M. Fearnside. 1999. Incêndios na Amazônia brasileira: Estimativa da emissão de gases do efeito estufa pela queima de diferentes ecossistemas de Roraima na passagem do evento “El Niño” (1997/98). Acta Amazonica 29(4): 513-534.

[12] CPC (Climate Prediction Center). 2023a.  SST Week centered on October 18, 2023. Climate Prediction Center (CPC), National Centers for Environmental Prediction (NCEP) /National Weather Service
(NWS)

[13] Lian, T., J. Wang, D. Chen, T.  Liu & D. Wang.  2023. A strong 2023/24 El Niño is staged by tropical Pacific Ocean heat content buildup. Ocean-Land-Atmosphere Research :2: art. 0011.

[14] CCSIRICS(Columbia Climate School International Research Institute for Climate and Society). 2022.  ENSO Forecast: December 2022 Quick Look CCSIRI, 19 de dezembro de 2022).

[15] Becker, E. 2023. June 2023 ENSO update: El Niño is here. NOAA ENSO blog, 08 de junho de 2023.

[16] CPC (Climate Prediction Center). 2023b. El Niño/Southern Oscillation (ENSO) diagnostic discussion. Climate Prediction Center (CPC)National Centers for Environmental Prediction (NCEP) /National Weather Service (NWS), 14 de outubro de 2023.

[17] Araújo Gonzalez, R., R.V. Andreoli, L.A. Candido, M.T. Kayano & R.A.F. de Souza. 2013. A influência do evento El Niño – Oscilação Sul e Atlântico Equatorial na precipitação sobre as regiões norte e nordeste da América do Sul. Acta Amazonica 43(4): 469–480.

[18] Cox, P.M., P.P. Harris, C. Huntingford, R.A. Betts, M. Collins, C.D. Jones, T.E. Jupp, J.A. Marengo & C.A. Nobre. 2008. Increasing risk of Amazonian drought due to decreasing aerosol pollutionNature 453: 212-215.

[19] CPC (Climate Prediction Center). 2023c. ENSO: Recent Evolution, Current Status and Predictions. Climate Prediction Center (CPC), National Centers for Environmental Prediction (NCEP) /National Weather Service (NWS), 23 de outubro de 2023.

[20] CPC (Climate Prediction Center). 2023d. CFSv2 forecast seasonal SST anomalies. Climate Prediction Center (CPC), National Centers for Environmental Prediction (NCEP) /National Weather Service (NWS).

[21] NOAA (National Oceanic and Aeronautic Administration). 2023. Experimental Probabilistic Monthly and Seasonal Precipitation Outlook by a Hybrid Prediction (Dynamical and Machine Learning Models) System. NOAA, outubro de 2023.


Sobre os autores

Rosimeire Araújo Silva é graduada em física pela Universidade Federal do Amazonas e em análise e desenvolvimento de sistemas pela Unifavip Wyden. Tem mestrado e doutorado em  clima e ambiente pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-Inpa. Atualmente é bolsista pós-doutorado no laboratório do Dr. Philip Fearnside, no Inpa. Pesquisa a influência da interação oceano-atmosfera no clima amazônico, especialmente o efeitos e diferentes tipos de El Niño.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Este artigo foi publicado originalmente no veículo jornalístico Amazônia Real e pode ser lido na íntegra AQUI

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