Descendentes de seringueiros tentam retomar o seringal, mas esbarram na influência dos grandes fazendeiros.
No Seringal Porto Luiz, no município de Acrelândia, filhos e netos de seringueiros tentam retomar as antigas colocações compradas pelos “paulistas” – e agora transformadas em grandes fazendas de gado e de soja. No começo de dezembro, atendendo a uma ação movida pelos fazendeiros, a Justiça determinou a expulsão das famílias da área. Eles prometem resistir. Varadouro esteve na área de conflito e conta um pouco essa história.
Por Fábio Pontes e Gleilson Miranda, dos varadouros de Acrelândia
Os pedaços de madeira amontoados num canto do terreiro são um dos sinais da ação policial ocorrida há poucos dias na zona rural de Acrelândia. Em outro espaço, os pneus transformados em vasos de plantas indicam onde seria o pequeno e simples jardim da residência. Logo ao lado está o bananal e um vasto roçado de hortaliças da família que ali morava. As bananeiras estão carregadas, cheias de cachos. Mais à frente estão os pés de milho, de macaxeira, de feijão e as hortaliças plantadas ao longo dos últimos dois anos. Agora não se sabe mais o destino de tudo isso – e nem das vidas que ali plantavam não apenas sementes para a agricultura, mas também as sementes do sonho de um dia terem um pedaço de chão para chamar de seu.
Em menos de 24 horas, todos os investimentos feitos por 65 famílias de sem-terra foram destruídos pela ação de tratores escoltados por policiais, amparados pelo mandado de reintegração de posse expedido em favor de grandes fazendeiros. Para impedir uma nova entrada na área desapropriada, valas foram abertas no meio do ramal que dá acesso às áreas ocupadas pelos agricultores. Sem ter para onde ir, passaram a morar, todos juntos, num barracão construído na propriedade de um produtor vizinho à área de conflito.
Em camas e colchões jogados ao chão de terra ou em redes, os agricultores resistem – inconformados – a uma decisão judicial que lhes tirou um pequeno pedaço de terra, para repassar a quem já é dono de milhares de hectares. Enfrentando a chuva, o calor e o ataque de carapanãs durante a noite, eles prometem não sair dali até que as autoridades garantam a eles um princípio básico: o direito à terra.
Este foi o cenário encontrado por Varadouro numa manhã chuvosa do começo de dezembro – dias após o mandado judicial ser cumprido. O acampamento dos trabalhadores rurais fica dentro das terras que formariam o antigo Seringal Porto Luíz, no município de Acrelândia (distante 110 Km de Rio Branco). Acessada pelo ramal do Granada, próximo ao projeto de assentamento Pedro Peixoto, a ocupação ficou conhecida como comunidade do Granadinha.
Três fazendeiros e um arrendatário reivindicam a propriedade da área, e acusam as famílias de invasão (tema da próxima reportagem). Elas negam, afirmando que as terras pertencem à União, cuja regularização fundiária nunca foi feita pelo Estado. De acordo com os agricultores, até agosto de 2021, quando as primeiras famílias começaram a chegar, existia o processo para a criação do projeto de assentamento Porto Luiz II, que tramitava no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A partir de setembro – sem nenhuma justificativa – o processo foi extinto, dizem eles à reportagem.
“A decisão da Superintendência Regional do Incra no Acre de cancelar, em 2021, a portaria de criação do referido assentamento, publicada em 2004, ocorreu com base na decisão judicial favorável, de manutenção das posses dos ocupantes anteriores em detrimento à implantação do projeto. Teve também como fundamento o resultado de laudo agronômico, elaborado por técnicos do Instituto em 2019, que apontou inviabilidade técnica de reativação do Projeto de Assentamento Porto Luiz II.”, diz nota enviada pela assessoria de imprensa do Incra ao Varadouro.
Uma retomada de território
A ocupação dos pouco mais de quatro mil hectares hoje em litígio começou como uma retomada de território pelos filhos e netos dos antigos moradores do Seringal Porto Luíz. Assim como em toda a Amazônia, essas famílias foram obrigadas a abandonar as colocações com a venda de milhões de hectares de floresta para os “paulistas” que aqui chegavam. Ou saiam por bem, ou na bala. Não tinham direito a nada. Saim com as mãos abanando. Este era o principal resultado da política de integração da Amazônia com o resto do país, adotada pela ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).
A retomada do Seringal Porto Luiz aconteceu em meados de 2021. Um dos líderes do movimento foi o jovem Lucelino da Silva Oliveira, de 37 anos. Ele é filho do seringueiro Luiz Almeida de Oliveira, 57 anos (Assista ao minidocumentário com ele). Nas memórias de seu Luíz ainda estão os tempos em que o Porto Luíz era um seringal ativo. Até hoje sabe as rotas das estradas de seringa e dos varadouros por onde escoava a produção da borracha, com destino ao barracão do patrão. À época, toda a produção era escoada até as margens do rio Iquiry – de onde descia até desaguar no Purus.
Como prova de sua vida no Seringal Porto Luiz, na terra ainda estão fincadas as bases de quariquara da velha casa. A quariquara é um tipo de madeira conhecida por sua força e resistência, por isso era usada como o alicerce das casas dos seringueiros. “Pode passar 100 anos e a madeira não apodrece. Pode ir lá e você vai ver os tocos no chão”, afirma seu Luíz.
“O último morador aqui desta colocação, até os anos 80, era o meu avô. Ele cortava seringa e quebrou castanha neste seringal a vida toda. Lá ainda estão os tocos do barraco do meu pai. Quando ele casou a primeira casa dele foi lá”, diz Lucelino. A colocação era a Vai Quem Quer. A colocação vizinha pertencia ao avô da esposa de Lucelino. Coincidência ou não, quis a vida que os netos dos velhos seringueiros se unissem no casamento. Foi a partir deste histórico que as duas famílias decidiram se juntar para retomar o antigo seringal de onde seus pais e avós foram expulsos.
“Na época tiraram eles alegando que era do fazendeiro. Naqueles tempos, para o seringueiro, o fazendeiro vestia o paletó e era lei. Ninguém sabia ler nem escrever. Ele [fazendeiro] falava, virava verdade. O meu avô, para você ter uma ideia, o Incra nem deu um pedaço de terra pra ele. A área que ele conseguiu para morar foi dada por um dono de uma área vizinha. Nem direito a um pedaço de chão o governo deu pra ele”, conta o neto.
A primeira retomada aconteceu em agosto de 2021. Foram 22 famílias descendentes de seringueiros. “A nossa intenção era ter a posse, não invasão. Vamos entrar porque é nosso.” Dois dias após a ocupação, lembra Lucelino, os fazendeiros usaram de sua influência e acionaram a Polícia Ambiental para expulsá-los. Baixada a poeira, eles retomaram o seringal, agora levando mais famílias sem-terra de Acrelândia.
“Eu só sei viver da terra”
Entre as famílias estava a do paranaense Nelson Borges de Andrade, de 50 anos. Ele é um agricultor que tem passado os últimos anos em busca de terra para se estabilizar. Ele diz que já foi beneficiário de assentamento do Incra no Paraná, mas que, por problemas familiares, precisou abandonar a área. Decidiu fazer sua própria marcha para o oeste, passando por Mato Grosso e Rondônia. No estado vizinho chegou a comprar um lote no distrito de Nova Califórnia, localizado na divisa com Acrelândia. Afirma que por enfrentar conflitos e ameaças com os vizinhos, abandonou Rondônia e veio para o Acre. (Entenda mais sobre histórico de conflitos na região abaixo).
“A gente que é nascido na roça não sabe fazer outra coisa. Eu só sei viver da terra. Eu estava morando lá em Acrelândia com a família, me virando como podia na cidade. Foi aí que convidaram a gente pra vir ocupar aqui essa área. Tudo o que eu tinha, o pouco que eu tinha, investi aqui. Agora destruíram tudo. Mas nós não vamos embora, vamos resistir”, diz Andrade.
Eni Campos tem 42 anos e é mãe de quatro filhos. Ela é natural de Cacoal, no interior de Rondônia. Também estava morando na cidade de Acrelândia antes de ocupar uma área no Porto Luíz. No dia em que Varadouro visitou o acampamento, ela era uma das poucas mulheres presentes.
A grande maioria precisou ir para a casa de parentes e amigos na cidade. O Conselho Tutelar de Acrelândia ameaçou pedir a perda da guarda das crianças cujas mães permanecessem no acampamento. Para o conselho, o ambiente é de insalubridade e violência para os menores.
Naquele dia, Eni era a chefe de cozinha. Com a ajuda de outras companheiras, preparou o almoço. Orgulhosa, mostrava toda a produção de hortaliças aproveitadas para alimentar o movimento de resistência dos sem-terra. “Se você olhar aqui, o jerimum, o pepino, a abóbora, o arroz e o feijão, o milho, tudo foi plantado aqui. Se você fosse lá olhar o meu roçado, era a coisa mais linda”, afirma, com lágrimas nos olhos.
“É doido, porque é o sonho da gente, né? Estou aqui afastada dos meus filhos. Meus filhos estão lá na rua (cidade), na casa da minha mãe, e eu aqui ainda lutando pra ver se recuperamos nossa terra. Cada coisinha que a gente plantou, plantamos com amor, de ver ali crescer e tiraram tudo. Ver o trator destruir minha casinha.”
Acrelândia: um celeiro de conflitos
Acrelândia é líder em registro de conflitos por terra no Acre ao longo dos últimos anos. Segundo dados do Relatório Conflitos no Campo Brasil, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2022 foram registrados 13 casos de conflitos pela posse de terra no município. Além do Porto Luíz, outro seringal a conviver com disputa fundiária é o Porto Dias, onde 80 famílias de extrativistas sofrem pressões e ameaças de expulsão pelos grandes fazendeiros do entorno.
A posição geográfica e o processo de ocupação das terras que formam o município podem explicar este cenário social de conflitos e violência no campo. Acrelândia é a porta de entrada do Acre para quem chega pela BR-364. Está bem na tríplice divisa Amazonas, Acre e Rondônia – a famigerada Amacro. Tirada do papel pelos três governadores bolsonaristas da região – entre 2019 e 2022 – para impulsionar o agronegócio, a zona Amacro se tornou a nova fronteira do desmatamento na Amazônia – e palco de muitos conflitos sociais.
Historicamente, Acrelândia já apresentava altas taxas de desmate. O município é a principal e mais forte fronteira agrícola do estado. Suas terras estão ocupadas pela agricultura e a pecuária. De 2018 para cá, a soja também passou a ocupar a região. Suas terras são conhecidas por serem as mais produtivas e rentáveis – por isso são tão cobiçadas e disputadas pelo agronegócio. Desde a sua fundação, Acrelândia possui vocação para a economia do campo.
O pequeno vilarejo das décadas de 1980 e 1990 foi formado pelos camponeses vindos do Sul em busca de boas terras nesta parte do país. Hoje, Acrelândia possui pouco mais de 14 mil moradores, conforme o último Censo 2022 do IBGE. Sua população é predominantemente formad
a pelos colonizadores sulistas – cuja vocação estava para a atividade rural.
Essa “vocação rural” do município, obviamente, resultou em graves conflitos sociais no campo, com a expulsão – na bala e na força – de milhares de famílias seringueiras que ali viviam. Processo vivido em todo o estado durante a política de bovinização do Acre fomentada pela ditadura civil-militar.
Essa corrida pela terra em Acrelândia extrapola os limites dos municípios – e do próprio Acre. Muitas famílias passaram a buscar lotes no Amazonas, em Lábrea. A região também é marcada por intensos conflitos fundiários – algumas vezes resultando em morte. Em março de 2019, um agricultor de Acrelândia foi executado por pistoleiros numa outra área de conflito, no Seringal São Domingos, em Lábrea.
É neste ambiente de muita violência e na lei do manda quem tem mais dinheiro, que os descendentes dos antigos seringueiros de Acrelândia tentam retomar as terras onde moravam seus pais e avós. Sofrem ameaças e pressões – como a denúncia de contratação de policiais para atuarem como capatazes dos fazendeiros. Eles parecem ter sido abandonados pelo governo (ou o Incra). A Justiça parece não estar muito disposta a ouví-los.
E, assim, a velha tragédia amazônica vai se repetindo. Agora com novos coronéis ancorados em seu poderio econômico – e seringueiros que, de alguma forma, tentam resistir com os novos empates. O Seringal Porto Luiz, de Acrelãndia, parece refletir bem este neocoronelismo amazônico. Em resumo: nada de novo no seringal.
Reportagem atualizada às 07:20 do dia 15 de janeiro para acrescentar a resposta enviada pela assessoria de imprensa do Incra.
Leia a reportagem na íntegra no site do Jornal O Varadouro: clique AQUI