Conteúdo publicado originalmente em Jornal O Varadouro,
por Francisco Costa, dos varadouros de Porto Velho
e Fábio Pontes, dos varadouros de Rio Branco
Em Rondônia, o nível crítico do rio Madeira dificulta acesso às comunidades ribeirinhas, cujos poços já estão vazios. No estado vizinho, rio Acre continua em alerta máximo ao longo de toda a sua calha; prefeitura já distribuiu mais de 14 milhões de litros de água em caminhões-pipa para comunidades rurais. Amazonas continua em calamidade com estiagem severa que deixa comunidades em insegurança hídrica e alimentar.
Em um único mês, os moradores de Porto Velho foram surpreendidos com chuvas de granizo, ventos de quase 50/km por hora e raios que arrancaram árvores pela raiz na região central da capital. Casas foram destelhadas e houve queda de energia em diversos bairros. As tempestades de verão trouxeram, junto com elas, a fumaça das queimadas, deixando várias cidades com o ar altamente tóxico. No pior cenário ambiental das últimas décadas, um dos maiores rios do planeta, o Madeira, atingiu o menor nível de água dos últimos 56 anos. Chegou a 1,30 metro na terça-feira, 3. Antes, a menor marca já registrada tinha sido de 1.36 metro, em 2020. Segundo monitoramento da Agência Nacional de Águas (ANA), a cota continua reduzindo, e pode chegar à situação de emergência.
O visual do rio Madeira de hoje é completamente oposto ao de 2014, logo após o funcionamento das turbinas das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, quando houve transbordamentos que atingiram mais de 30 mil famílias, 17 bairros, três distritos e isolou o Acre e a parte mais noroeste de Rondônia por via terrestre com o restante do país.
O rio subiu tanto (19,74 metros) que fez comunidades inteiras ficararem debaixo d’agua, espalhando clima de desespero e falta de perspectivas para ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, trabalhadores rurais e pescadores. Mas a seca deste ano, chegou ao distrito de Calama, distante 139 km de Porto Velho, localidade atingida também pelas hidrelétricas quase uma década atrás.
O professor e morador de Calama Luciomar Monteiro diz que o rio Madeira ainda permanece na normalidade, considerando os anos anteriores, segundo os nativos. “Daqui uns dias vem o repiquete e a água começa a subir” é a expectativa da comunidade, considerando seus conhecimentos tradicionais. A comunidade Demarcação foi onde o rio mais baixou, “ficou completamente inavegável”.
Alguns afluentes do Madeira não têm mais condições de passar com barcos. Os deslocamentos, muitas das vezes, só é possível empurrando as embarcações no braço. “Tão pegando peixe quase na mão, e se continuar secando os animais vão morrer. Por enquanto, não temos relatos de comunidades sem abastecimento de água ou fome ainda”, informa o professor.
Cerca de 15 mil pessoas, que dependem de poços tubulares profundos, estão sendo afetadas pela falta de abastecimento de água tratada no baixo Madeira, informou a Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia (Caerd), por causa da redução do volume de água no lençol freático.
“Estão sendo priorizados o abastecimento de locais que prestam serviços essenciais, como unidades de saúde, escolas e órgãos públicos, para garantir que essas instalações continuem funcionando adequadamente, apesar das condições adversas de abastecimento de água”, disse a Caerd ao Varadouro, por meio de nota. Em algumas cidades de Rondônia, a captação e distribuição de água já diminuiu cerca de 40%.
No monitoramento do Serviço Geológico Brasileiro (CPRM), na quarta-feira (4), o rio Madeira, em Porto Velho, mediu 1,23 metro às 16h. Já na noite de segunda (8), a medição apontava 1,17 metro. Um volume mais do que crítico e jamais imaginado pela população portovelhense. Nos últimos meses, o gigantesco rio foi reduzido a bancos de areia extensos, o que coloca em risco a navegação das embarcações.
Por determinação da Marinha, as navegações noturnas estão proibidas. A hidrovia do Madeira é uma das mais importantes rotas comerciais entre as capitais Porto Velho e Manaus. Muitos dos produtos que abastecem o mercado manauara saem dos portos da capital de Rondônia.
As altas temperaturas mudaram a paisagem natural. Há 50 anos, o sol forte em Porto Velho marcou mais de 40ºC. Neste ano, agosto foi o mais quente, com o registro de temperaturas de até 37,5°C. Nos dias atuais, o portovelhense tem a sensação de permanecer 24 horas na frente de uma churrasqueira.
A estiagem severa que afeta oito estados brasileiros pressionou a quarta maior usina hidrelétrica do país, a Santo Antônio Energia no rio Madeira. O nível crítico do manancial levou à interrupção momentânea das operações do complexo hidrelétrico. Em comunicado, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) disse que “o abastecimento de energia em todo país está garantido”, mesmo com o volume baixo dos rios na Amazônia.
Há cinco dias, o linhão de transmissão (Linhão do Madeira), que interliga as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau à subestação de Araraquara (SP), abastecendo as regiões Norte e Sudeste do país, foi desligado. De acordo com o ONS, Acre e Rondônia não sofrerão prejuízos. Em Porto Velho houve quedas de energia em diferentes bairros e horários distintos durante parte da tarde e começo da noite da quinta-feira (5).
Populações da floresta assustadas
O verão extremo que afeta grandes empreendimentos hidrelétricos, matando peixes, botos, colocando em risco a biodiversidade amazônica e transformando paisagens da mais importante floresta tropical do mundo em deserto, tem assustado as populações tradicionais da Amazônia.
Arão Wao Hara Ororam Xijein, é liderança indígena, coordenador da Organização Etnoambiental Oro Wari e mora na Terra Indígena Igarapé Lage, no município de Guajará-Mirim, onde vivem mais de 800 famílias de seu povo. Em Guajará-Mirim são mais de cinco mil indígenas, que corresponde a 1,34% de todo estado, segundo os dados do mais recente Censo Indígena 2022 do IBGE.
Apesar de ser o município rondoniense com a maior cobertura de floresta intacta e protegida por terras indígenas e unidades de conservação, Guajará-Mirim vem sendo, nos últimos anos, uma área onde a devastação avança com o roubo de madeira, o desmatamento e a invasão de grileiros.
“Essa questão da mudança climática é uma preocupação muito grande. Nunca imaginávamos chegar nesse ponto. Sempre acreditamos na convivência, preservação com a natureza e a floresta. Quase 90% da Floresta Amazônica tem sido devastada. E hoje os biomas estão se ‘vingando’ por meio dessa questão de temporais e chuvas fortes que estão vindo”, diz Arão.
As temperaturas elevadas nos territórios indígenas preocupa. “Os nossos anciãos não suportam essa quentura. Os igarapés estão muito secos. Isso prejudica a questão de alimentação, principalmente a falta de peixes, comida predileta do nosso povo. Os nossos anciãos já tinham previsto que tudo isso iria acontecer e não ouvimos. Não plantamos ainda esse ano porque os mais velhos da aldeia recomendaram fazer isso lá para segunda quinzena de outubro, quando pode ter previsão de chuvas”, diz ele em entrevista ao Varadouro.
A liderança também fala do tormento que tem sido para os povos indígenas a possibilidade de novas construções de empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, como o projeto da usina binacional do Ribeirão, em Nova Mamoré, e de Cachuela Esperanza (Rio Beni, em território boliviano), a terceira e quarta maiores hidrelétricas projetadas para a Bacia do Madeira.
Para ele, é inconcebível continuar defendendo o capital financeiro e matando o meio ambiente, inclusive em momentos quando o mundo enfrenta tragédias ambientais. “Esses projetos já diminuíram a quantidade de peixes para nossos povos, trouxe inundações, secas. Nossa grande preocupação é com esse projeto que vai ser construído na nascente do igarapé Ribeirão, aqui perto de nosso território”, diz Arão Wao Hara Ororam Xijein,
Ele alerta: “Isso vai acabar com a sobrevivência do nosso povo, com os ribeirinhos, que dependem, sobrevivem dos peixes. O governo não ouve o clamor da nossa população. Vai trazer uma inundação muito grande para toda região de Guajará-Mirim, Nova Mamoré. Somos quase sete mil indígenas que vamos ser afetados”.
Amazonas Insólito
A falta de chuvas causa impactos até no majestoso Amazonas, o segundo rio mais extenso do planeta. Mais de 23 municípios amazonenses estão em situação de emergência. O governo federal informou que, dos 62 municípios do estado, 35 estão em situação de alerta, duas em atenção e duas em normalidade. O governo estadual decretou situação de emergência em 55 municípios amazonenses afetados pela estiagem.
Quase três mil estudantes estão sem acesso às escolas pela falta de navegabilidade dos mananciais. Mais de 120 comunidades rurais foram afetadas. Na comunidade do Arumã, em Beruri, ocorreu deslizamento de terras na margem do rio Purus, afetando 200 moradores. Com o fenômeno da terra caída, uma comunidade ribeirinha inteira desapareceu.
Dezenas de carcaças de peixe-boi, botos, pirarucus, e outras espécies de peixes foram encontrados às margens do Amazonas. Há suspeita de que o calor tenha fervido água dos rios ao ponto de quase uma panela de pressão no fogo. Os incêndios florestais continuam na região do rio Negro, no distrito de Cacau Pirêra, em Iranduba, a 27 km de Manaus. Cerca de 40 bombeiros tentam conter o avanço do fogo. E um total de 191 brigadistas do Ibama e ICMBio estão atuando no Amazonas.
Com a possibilidade da situação da seca ficar mais grave, a Defesa Civil acredita que mais de 500 mil pessoas sejam atingidas no Amazonas pelos efeitos da estiagem. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), além do El Niño, que aumenta a temperatura das águas superficiais do oceano Pacífico, o aquecimento do Atlântico Tropical Norte, logo acima da linha do Equador, inibe a formação de nuvens, reduzindo o volume de chuvas na Amazônia.
O governo do Amazonas disse que adotou medidas para apoiar famílias nos setores de saúde e abastecimento de água, bem como na distribuição de cestas básicas, kits de higiene pessoal, renegociação de dívidas e fomento para produtores rurais.
Após visita de uma comitiva interministerial do governo Lula ao Amazonas na semana passada, foi anunciado o pagamento antecipado de benefícios sociais como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuado (BPC) e Seguro-Defeso para pescadores dos municípios em emergência.
A União prometeu investimentos de R$ 138 milhões para obras de dragagem, sendo R$ 38 milhões em trecho de oito quilômetros do rio Solimões (entre os municípios de Benjamin Constant e Tabatinga), que terá duração de 30 dias; e R$ 100 milhões em 12 km do rio Madeira (perto da foz do Rio Amazonas em Tabocal) para desobstrução, em 45 dias, do fluxo das águas e navegabilidade dos rios.
Cabeceiras vazias
O Acre é considerado o estado onde nascem os rios da Amazônia, onde estão as cabeceiras. Elas não estão precisamente em território acreano, mas bem ao lado, em terras peruanas. Mas é no Acre que os mananciais da Bacia Amazônica vão ganhando suas formas. E é exatamente essa geografia peculiar que potencializa os impactos de eventos climáticos extremos, como a atual seca de 2023.
Mesmo em anos sem influência de eventos climáticos como El Niño, os rios e igarapés acreanos alcançam níveis críticos nesta época do ano. Em muitas regiões, em especial nas partes altas, o nível da água fica baixo das canelas, como é comum ouvir dos caboclos amazônicos. Com o impacto ocasionado pelas anomalias de temperaturas no Pacífico e no Atlântico, o cenário é ainda pior.
É o caso do rio Acre, a única fonte de captação de água que abastece mais da metade da população do estado. Na segunda-feira (9), o manancial estava na marca de 1,50m na capital Rio Branco – 25 centímetros acima do volume mais baixo já registrado até aqui, que foi de 1,25m, em outubro de 2022. Um nível extremamente baixo para a época do ano. Em tempos passados, essa era a época do início das primeiras chuvas do período invernoso. Em 2023, o manancial permanece em situação de alerta máximo, status que mantém desde o começo de agosto.
O nível crítico da vazante contrasta com o começo do ano. Em março, o rio registrou a terceira maior enchente em cinco décadas de aferições. Diante da situação extrema, o governo estadual decretou situação de emergência ambiental na semana passada. O mesmo tinha feito a Prefeitura de Rio Branco semanas antes. Desde julho a prefeitura realiza a distribuição de água potável para comunidades rurais e ribeirinhas afetadas pela estiagem.
Até a semana passada, segundo a Defesa Civil, mais de 14 milhões de litros de água tinham sido distribuídos por meio de caminhões-pipa. Ao todo já são 17 mil pessoas atendidas, em 27 diferentes comunidades da capital acreana.
A situação de calamidade se repete nas cidades do interior. O rio Acre está em situação de alerta máximo em todos os outros seis municípios localizados às suas margens. O rio Iaco, em Sena Madureira (quarta maior cidade acreana), registrou a cota de 59 centímetros na segunda. Um dia antes, estava em 62 centímetros. Afluente do Purus, o Iaco é a única fonte de captação para o serviço de distribuição de água potável em Sena Madureira.
No Alto Rio Juruá a situação é de alerta. Em Marechal Thaumaturgo o Juruá estava apenas 58 cm acima da cota de alerta máximo, que é de 2 metros. Nos primeiros dias de outubro uma mortandade de peixes foi registrada no rio Amônia, afluente do Juruá. Segundo os moradores, as elevadíssimas temperaturas registradas teriam sido o motivo para a catástrofe ambiental. Os técnicos do Imac avaliam as causas.
“A diminuição abrupta das precipitações acarreta considerável redução no nível dos rios Acre, Purus, Juruá, Tarauacá, Envira, Iaco e Moa, atingindo substancialmente o abastecimento hídrico da população, agricultura e pecuária dos municípios localizados em suas respectivas bacias”, diz trecho de boletim diário emitido pelo Centro Integrado de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental (Cigma).
E desta forma, os moradores desta parte da Amazônia tentam se adaptar (a conhecida resiliência) a estes eventos climáticos extremos. Quando não são as secas severas, o mundo desaba em água sobre a cabeça da população, transbordando os mesmos rios que hoje estão secos. As secas e as enchentes são fenômenos comuns na região. O problema é que eles ocorrem cada com mais intensidade e frequência, potencializando os impactos não apenas sobre o ambiente mas na vida de todos os amazônidas – sejam os povos da floresta ou das cidades.
Eis a nossa Amazônia em colapso.
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