Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media

Rio em fluxo: o impacto das mudanças do clima na Amazônia

Por Daniel Grossman, para InfoAmazônia

Jochen Schöngart move-se rapidamente entre as formações rochosas e encostas do rio Amazonas, não muito longe do centro de Manaus, em uma curta viagem de barco. Ainda é cedo em uma manhã de outubro de 2023, mas o calor persistente cobre seu rosto de suor.

“Olha, um pedaço de cerâmica!”, exclama, apontando para um caco desgastado preso entre as pedras, provavelmente uma relíquia de uma civilização anterior. Não é a única. Agachando-se, Schöngart, cientista florestal do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), observa o leito do rio e as rochas a seus pés.

Bem abaixo do nível normal do rio para a época do ano, a pedra exibe rostos desenhados em tamanho natural, uma espécie de galeria arqueológica talhada durante uma grande seca há 1000 anos. Agora, eles estão expostos novamente por uma nova seca, a pior na história moderna da região.

Para piorar, a seca coincidiu com uma série de ondas de calor prolongadas. Em setembro e outubro, as condições meteorológicas no estado do Amazonas continuavam devastadoras e as temperaturas atingiam picos de 39ºC, 6 graus acima do padrão histórico. Áreas secas da floresta, incendiadas por fazendeiros, envolveram a cidade numa espessa e sufocante nuvem de fumaça. Então, no episódio mais inesperado da estação, uma tempestade de areia varreu Manaus, bloqueando grande parte da luz solar em algumas regiões.

Schöngart e outros pesquisadores acreditam que tais mudanças tendem a ser intensificadas à medida que o clima global passe a atingir temperaturas mais altas. A seca atual oferece um vislumbre sombrio dessas mudanças, com mortandade de peixes e botos, e ameaça a segurança alimentar e a própria sobrevivência de muitas comunidades ribeirinhas.

Se a combinação de níveis de cheia e vazante cada vez mais extremos se tornar a regra, as ramificações desse novo regime podem se estender por toda a bacia Amazônica e além dela, ameaçando a existência da floresta – que concentra grande parte da biodiversidade do planeta, influencia o clima regional e global, além de sustentar milhões de pessoas.

“Estamos presenciando mudanças massivas no ciclo hidrológico” da bacia Amazônica, Schöngart pontua. A questão é, como ele diz, se o ecossistema e as pessoas podem se adaptar a isso.

Golfinhos sofrem com a seca

Tentando ganhar do ronco do motor de popa, Ayan Fleischmann grita ordens ao barqueiro de um bote que navega pelas águas do lago Tefé, em outubro de 2023. Fleischmann é hidrologista no Instituto Mamirauá, em Tefé, no Amazonas. A cidade de 70.000 habitantes fica à beira do lago e o pesquisador está monitorando as condições extremas na Amazônia central, 600 quilômetros rio acima de Manaus, em uma das regiões mais afetadas pela seca.

Navegamos até o que parece ser o resquício de uma cerca — um poste de madeira torto e esbranquiçado, sobressaindo acima da superfície do lago. Poucos suspeitavam que ele guardava uma estação de monitoramento de temperatura. É intencional, diz Fleischmann. “Colocamos nesse tipo de poste para que ninguém ache que é importante”, diz ele, sorrindo.

Ele agarra o poste sem graça e puxa um registrador de dados do tamanho de um relógio de pulso, amarrado a um pedaço de barbante. A temperatura média da água para esta época do ano é de 30°C, mas o sensor recentemente registrou um pico de 39,1°C. Fleischmann diz que as partes mais rasas do lago podem ter atingido 41°C no final de setembro. O ar em outubro também estava quente, cerca de 1,5°C acima da média. Ao mesmo tempo, a seca reduziu o lago; até o final do mês, a superfície do lago Tefé ainda iria diminuir 6,5 metros abaixo da média anual. Combinados, o nível extremamente baixo d’ água e a alta temperatura do ar cobraram um preço mortal à vida da floresta.

Eles morreram rápido.

No mesmo dia infernal de setembro, cardumes de peixes mortos cobriram largas extensões da superfície do lago Tefé – provavelmente vítimas do calor intenso. Um time de pesquisadores do INPA demonstrou que peixes amazônicos não toleram temperaturas acima de 35 a 37ºC. “Qualquer coisa acima disso é inadmissível”, pontua Alexandre Pucci Cercos, líder do grupo de pesquisa em ecologia e biologia de peixes do Instituto Mamirauá. “Um grau a mais pode não parecer muito, mas faz uma enorme diferença. Hoje, o lago Tefé tem dezenas de espécies de peixe. Mas, como já foi dito, se essas condições desfavoráveis se tornam mais frequentes, algumas espécies migrarão e outras serão extintas”.

Um problema que não é isolado

Outro fator que influenciou a seca do ano passado foi o aquecimento atípico no Atlântico, logo ao norte da Linha do Equador, que, assim como o El Niño, desvia o ar úmido de sua rota e tem sido associado a secas anteriores na Amazônia. O Relatório de Avaliação da Amazônia 2021, uma avaliação enciclopédica da população, ecologia e clima da Amazônia, aponta que, das 15 megassecas registradas entre 1906 e 2021, seis coincidiram com o El Niño e três com as águas quentes do Atlântico Tropical Norte. Adicionando a seca de 2023, todas as quatro secas deste século ocorreram quando ambas as regiões oceânicas estavam aquecidas.

A mudança climática é a principal suspeita pelas alterações observadas nas condições oceânicas que propiciam as secas, embora os mecanismos subjacentes ao seu papel não sejam claros. Algumas pesquisas sugerem que o aquecimento global pode estar aumentando a intensidade e a frequência dos El Niños. Além disso, o aumento mais amplo nas temperaturas oceânicas causado pelo aquecimento global também pode estar contribuindo, criando um contexto para áreas anômalas de água mais quente no Atlântico e no Pacífico. As temperaturas médias da superfície do mar global têm aumentado constantemente por mais de um século, mas, em 2023, a média global quebrou recordes anteriores em todos os meses a partir de abril, uma tendência que continuou neste ano.

Um experimento de modelagem divulgado em janeiro pela World Weather Attribution, uma colaboração internacional de cientistas climáticos, descobriu que as mudanças climáticas aumentaram em 10 vezes a probabilidade de precipitação observada na Bacia Amazônica em 2023. Seu impacto foi ainda maior na probabilidade de uma seca agrícola, na qual a baixa precipitação e as altas temperaturas combinam-se para ressecar o solo, estressando as plantações e as florestas ao mesmo tempo. A modelagem concluiu que as mudanças climáticas aumentaram em 30 vezes a probabilidade de uma seca agrícola tão profunda quanto a de 2023.

De maneira mais simples, a seca teria sido improvável se as mudanças climáticas não tivessem aquecido o planeta. Marengo ainda não está pronto para dizer que a seca foi causada pelas mudanças climáticas, mas ele a vê como uma “amostra” do que está por vir. “Parece que agora estamos olhando para algumas dessas coisas que poderiam acontecer nas próximas décadas.”, diz.

No futuro, níveis muito altos de água também podem ameaçar algumas espécies da fauna amazônica, diz Rafael Rabelo, coordenador de pesquisa no Instituto Mamirauá. Ele está particularmente preocupado com o macaco-de-cheiro-preto (Saimiri vanzolinii), que vive apenas perto de Tefé em 800 quilômetros quadrados de floresta sazonalmente inundada, chamada igapó. Um estudo de modelagem está explorando se as águas de enchente mais altas esperadas no futuro prejudicarão o igapó, o que poderia colocar os próprios primatas em risco.

Insegurança alimentar

Uma escadaria de concreto e terra compactada com 130 degraus desce abruptamente desde a aldeia, situada em um barranco com vista para o rio Amazonas, perto de Tefé, até o leito seco do rio. Os degraus são a primeira etapa de uma viagem árdua tornada necessária pela seca.

Santos resmunga ante o peso de uma canoa de madeira feita à mão, que ele e outros três membros do povo Kambeba se revezam carregando, dois de cada vez, ladeira abaixo.

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