Texto por Silvana Lessa, em colaboração para o Varadouro
Quando criança, Val preciso andar quilômetros a pé para chegar até a escola. No inverno, ônibus não entrava no ramal, e os pés ficavam cheios de lama. Para concluir o ensino básico, se separou da família e foi estudar em Brasileia. Após muita persistência, hoje estuda Direito no Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul.
A Amazônia é um lugar de contrastes e desafios, onde a vida segue ritmos diferentes dos grandes centros urbanos. É um território de riqueza natural e cultural, habitado por pessoas simples, mas que enfrentam diariamente adversidades em busca de melhores condições de vida. É o caso da jovem Valdicléia Souza Brito, 21 anos, chamada carinhosamente pela família e amigos de Val.
Ela nasceu e cresceu no Seringal São Cristóvão, na Colocação Cajá, que fica localizada na comunidade Paraíso, dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, no município de Brasiléia. De uma família de dois irmãos, é neta e filha de seringueiros. O pai, um pastor da comunidade e importante liderança local, que desde jovem atuava nos movimentos sociais extrativistas, sempre lhe ensinou a importância dos estudos.
Ela conta que costumava acompanhá-lo em reuniões na comunidade, e assim, vendo as pessoas reivindicando por coisas essenciais, como melhorias de ramais, criação de escolas e acesso a serviços de saúde, ela entendeu a importância dos estudos para mudar a sua realidade e das pessoas ao seu redor. Seu sonho é seguir a carreira jurídica, para poder lutar pelo direito das pessoas que vivem na sua comunidade. Mas, para alcançar este objetivo, precisou enfrentar muitas dificuldades para conseguir ter acesso a um direito básico: a educação.
A luta pela educação
Val sempre gostou da vida na reserva. Tímida, acompanhava a família para coletar castanhas quando era pequena. Reuniam-se primos, tios e avós na atividade, que ao mesmo tempo que era um momento de harmonia familiar, ajudava na subsistência. Era justamente este trabalho que proporcionava os recursos financeiros para que fossem comprados cadernos, lápis e mochila para o ano escolar das crianças.
Para conseguir chegar ao ensino superior, Val iria enfrentar diversas dificuldades. Sem alunos suficientes para ter uma professora na comunidade Paraíso, a jovem precisou morar, ainda muito nova, com uma avó paterna numa colocação vizinha, para conseguir concluir o ensino fundamental. Ela conta que iniciava o trajeto para a escola ainda de madrugada e, acompanhada de outras crianças, caminhavam pelo ramal de terra para chegar à escola. Entre brincadeiras e conversas, transformaram o longo percursos em um momento de risos e entusiasmos. No entanto, no período de chuva, chegavam com os pés cobertos de lama na sala de aula.
Mas o verdadeiro desafio aconteceu no ensino médio, em que necessitou mudar para a cidade de Brasiléia para conseguir estudar. Quando morava em sua comunidade, precisava acordar muito cedo para pegar o ônibus e, nos períodos de chuva, o veículo não aparecia, o que a impossibilitava de ir para a escola que ficava a 40 quilômetros da sua comunidade. Assim, com a ajuda de uma professora que lhe acolheu na cidade de Brasileia, ela pode continuar os estudos. “Este foi sem dúvida um dos momentos mais difíceis, não encontro palavras para descrever a saudade que sentia da família e da minha comunidade”, relata.
Resistiu por um ano, mas a saudade foi maior, e retornou para a casa dos pais no seringal. Ao voltar para a comunidade, entendeu que nunca conseguiria alcançar seus objetivos se desistisse de estudar. Assim, decidiu terminar os estudos mesmo com todas as dificuldades. Aos poucos, foi vencendo os desafios e conseguiu ingressar no curso de História, através de uma bolsa de estudos em uma universidade particular em Brasiléia. Mas não era este seu sonho.
Em busca de um sonho
Trabalhou como bolsista na Ufac durante a pandemia do Covid, para dar assistência às famílias, e depois como censitária do IBGE.
Fez um estágio em um escritório de advocacia, porém a bolsa não cobria todas as suas despesas para viver em Cruzeiro do Sul, e teve que abandonar a oportunidade para trabalhar como professora de História para crianças do ensino fundamental. Hoje, aos 21 anos, Valdicléia trabalha durante o dia e estuda Direito à noite, buscando realizar seu sonho de trabalhar na área jurídica.
“Sou feliz porque consegui alcançar parte do meu sonho, sigo inspirada na minha família e naquelas famílias que encontrei quando acompanhava meu pai nas reuniões, seus relatos foram uma inspiração. Ver meu avô, com 68 anos, cortando seringa é minha grande motivação. Sentir as mãos calejadas dos meus pais é algo que me toca profundamente”, comenta.
Ela conta que durante o curso, precisou enfrentar diversos preconceitos, de alunos e professores, que não conseguem ver potencial em uma jovem tímida da zona rural. Mesmo assim, ela persiste. Valdicléia é apenas um exemplo entre muitos jovens da Amazônia que lutam por um futuro melhor. Sua história é um lembrete de que, na floresta, é preciso enfrentar vários obstáculos para ter direito ao básico, uma educação.
“Gostaria de dizer que são muitas histórias como a minha, muitas meninas e meninos com os mesmos sonhos, jovens corajosos, mas infelizmente não são todos que tiveram a base familiar que eu tive. E hoje, quando vemos organizações não-governamentais trabalhando com jovens em nossas comunidades, alguns recebendo ajuda de custo, gostaria de dizer que é importante fortalecer o protagonismo jovem, porém é necessário estabelecer condições, uma contrapartida, que estes jovens estudem”, afirma a futura jurista nascida nos seringais da Resex Chico Mendes.
“Porque o estudo é o caminho para conquistar melhores condições de vida. Tudo é muito melhor a partir da formação profissional, através de um diploma de nível superior. E, para obter isto, é necessário estudar. Assim, estes jovens podem contribuir muito mais com o desenvolvimento sustentável das suas comunidades”, afirma.
Val nasceu e se criou numa região símbolo da luta de resistência do movimento seringueiro contra a transformação da floresta em pasto. Seringueiros e seringueiras resistiam com os “empates”, encaravam a jagunçada, para outro direito básico: o direito à terra. Essa luta foi consolidada com a criação das reservas extrativistas.