Grandes marcas compram créditos de carbono de esquema suspeito de esquentamento de madeira na Amazônia

por Fernanda Wenzel, traduzido por Roberto Cataldo, para Mongabay Latam

Uma análise de dois projetos de créditos de carbono na Amazônia brasileira concluiu que eles podem estar ligados à lavagem de madeira ilegal. Os projetos pertencem a Ricardo Stoppe Jr., conhecido como o maior vendedor individual de créditos de carbono do Brasil, que faturou milhões de dólares negociando esses créditos com empresas como Gol, Nestlé, Toshiba, Spotify, Boeing e PwC.

Dois grandes projetos de carbono na Amazônia brasileira, cujos créditos foram vendidos a empresas como Gol, Nestlé, Toshiba e PwC, podem ter sido usados para lavar madeira retirada de áreas desmatadas ilegalmente.

A conclusão é do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos fundada por procuradores e investigadores. Com sede na Holanda, a ONG investiga emissores de gases de efeito estufa, causadores do aquecimento global.

Autoridades brasileiras já haviam investigado casos de lavagem de madeira nas áreas  analisadas pelo CCCA. Uma destas investigações resultou na condenação do dono de uma empresa responsável por um dos empreendimentos.

O CCCA fez a análise a pedido da Mongabay, depois que uma fonte anônima apontou a participação de pessoas condenadas por lavagem de madeira nos projetos.

O CCCA analisou dois projetos REDD+ – Unitor e Fortaleza Ituxi – no município de Lábrea, estado do Amazonas. Juntos, eles abrangem uma área de 140.862 hectares — o tamanho do município de São Paulo — e visam impedir a emissão de 660.598 toneladas de CO2 por ano ao evitar o avanço do desmatamento em uma das áreas mais pressionadas da Amazônia.

O Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA encontrou indícios de lavagem de madeira em dois projetos REDD+ no sul do estado do Amazonas.

A sigla REDD+ significa Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal. A ideia é que os proprietários rurais recebam dinheiro para proteger áreas que, sem este apoio, poderiam ser desmatadas. As emissões evitadas como resultado dessa proteção podem então ser vendidas como créditos de carbono. As empresas que compram estes créditos podem dizer aos seus clientes e investidores que estão “compensando” suas pegadas de carbono e ajudando a combater as mudanças climáticas ao manter em pé florestas estratégicas.

Os dois projetos analisados pelo CCCA apostam  em planos de manejo florestal sustentável, um sistema em que a madeira é cortada e vendida sob rigorosas normas ambientais, como uma das principais ferramentas para garantir a vigilância da área e evitar o desmatamento ilegal. “A presença de trabalhadores nas atividades de manejo é o primeiro fator para inibir as pressões de invasões dentro da Área do Projeto”, informa uma apresentação do Fortaleza Ituxi. “A maioria das metodologias permite a exploração sustentável de madeira”, disse à Mongabay Bárbara Bomfim, engenheira florestal brasileira e especialista em carbono do Lawrence Berkeley National Laboratory, nos Estados Unidos.

Nesses dois casos, no entanto, o CCCA encontrou discrepâncias entre o volume de madeira declarado às autoridades e o que foi estimado com base em imagens de satélite – uma incompatibilidade que indica que essas áreas podem ter sido usadas para lavar o equivalente a mais de 4.200 caminhões de madeira.

Em comunicado à Mongabay, o Grupo Ituxi, empresa por trás de ambos os projetos, negou qualquer ligação com a lavagem de madeira e disse que todas as suas iniciativas são auditadas, verificadas e registradas.

No Brasil, toda madeira comercializada deve vir acompanhada de um DOF, ou Documento de Origem Florestal, também conhecido como crédito de madeira. Uma vez aprovado o plano de manejo florestal pelas autoridades ambientais, o proprietário está autorizado a emitir um número de DOFs correspondente ao volume de árvores que pode extrair daquela área.

A lavagem de madeira no Brasil é ilegal e envolve a compra de créditos de madeira falsos, oriundos de projetos de manejo florestal subexplorados. O crédito é emitido por projetos aprovados, mas as árvores a que esses créditos correspondem não são cortadas. Ao invés disso, os criminosos usam os documentos falsos para regularizar madeira retirada ilegalmente de áreas onde a exploração é proibida, como Terras Indígenas e áreas de conservação.

Máquinas pesadas para movimentar terra em uma estrada de chão dentro de uma área de manejo florestal no projeto REDD+ Unitor, em Lábrea (AM) Foto: Fernando Martinho.

Alguns grupos criminosos no Brasil são especializados em obter a aprovação de planos de manejo florestal por órgãos ambientais apenas para emitir créditos falsos, afirmou o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva à Mongabay. “Tem uma interceptação telefônica em que o dono de uma madeireira fala assim: ‘Eu não estou preocupado com madeira, madeira eu tenho aqui de graça, eu preciso de DOF’”, disse ele.

Na Amazônia, Saraiva trabalhou em algumas das maiores operações contra grupos madeireiros ilegais do Brasil. “Imagine uma organização criminosa que trabalha com a venda de carros roubados. Esse carro só vai ser vendido por um valor razoável se ele tiver um documento. É a mesma coisa com a madeira.”

Para avaliar o tamanho das áreas exploradas nos planos de manejo florestal dos dois projetos REDD+, o CCCA usou uma tecnologia de imagens de satélite chamada NDFI (Índice Normalizado de Diferença de Fração, na sigla em inglês) que mostra as cicatrizes deixadas na floresta pelos madeireiros. A tecnologia já é usada no Brasil pela Polícia Federal, pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do estado do Pará, e pelo Simex, o sistema de monitoramento da exploração de madeira desenvolvido por institutos de pesquisa independentes, como Imazon, Imaflora, Idesam e ICV.

O CCCA multiplicou a área explorada mostrada nas imagens de satélite pelo volume médio de madeira por hectare registrado em cada autorização de plano de manejo florestal. Essa média é calculada a partir de um inventário florestal realizado in loco pelo proponente do projeto.

O resultado mostrou ao CCCA uma estimativa de quanta madeira foi provavelmente extraída durante um determinado período. A seguir, essa estimativa foi comparada com o volume declarado ao Ibama no sistema DOF.

Se o volume de madeira no sistema DOF for muito superior ao da quantidade estimada de madeira, isso poderá indicar que os créditos adicionais foram usados para encobrir madeira extraída de outro local e lavada por meio desses projetos.

Os projetos de carbono do Grupo Ituxi estão localizados na divisa dos estados do Amazonas e Rondônia, área que têm sofrido intensa pressão de desmatamento. Imagem: Fernando Martinho.

As análises das áreas de manejo florestal dos projetos Fortaleza Ituxi e Unitor mostraram diversas discrepâncias que são fortes indícios de possível lavagem de madeira, segundo o CCCA. O caso mais marcante é o plano de manejo do Fortaleza Ituxi, que, segundo as imagens de satélite, teve apenas 35% de sua área explorada de 2018 a 2019, contabilizando uma estimativa de cerca de 48.588 m3 de madeira.

No sistema DOF, no entanto, os proprietários do projeto declararam ter extraído 104.700 m³  de madeira da área no mesmo período, mais que  o dobro do volume estimado pelo CCCA. “Isso é fraude”, disse Saraiva após avaliar as conclusões dos analistas.

O CCCA afirmou que seu método fornece volumes aproximados e que os números reais só podem ser determinados por uma auditoria in loco. O relatório completo e a metodologia podem ser vistos em um relatório publicado no site da organização.

Gustavo Geiser, perito da Polícia Federal no Pará, disse que sua equipe usa a mesma metodologia do CCCA quando investiga a extração ilegal de madeira no estado. “Esse caso que você descreveu, por exemplo, tem fortes indicações de lavagem de madeira”, disse ele à Mongabay.

Também foram encontradas discrepâncias nas atividades madeireiras da fazenda Três Barras, que faz parte do projeto REDD+ Unitor. Em um dos planos de manejo florestal da fazenda, os proponentes declararam vendas de 25.371 m³ de madeira, mas o CCCA estimou que eles extraíram, no máximo, 71% desse volume.

Em outro plano de manejo da mesma fazenda, o volume declarado foi de 24.148 m³, mas o CCCA estima que eles tenham extraído cerca de 58% disso. O CCCA também encontrou indícios de lavagem de madeira em outra propriedade do projeto Unitor, a Presidente Prudente, onde foram declarados 18.547 m³ de uma área explorada. Segundo análise do CCCA, a área não deveria ter fornecido nem metade desse valor. “Esse é um indício forte de uma possível transação de crédito sem lastro real na madeira”, disse à Mongabay Mikael Freitas, analista de dados do CCCA.

No total, a análise do CCCA sugere que 84.886 m³ de madeira foram cobertos por DOFs potencialmente falsos emitidos pelos esquemas de créditos de carbono, o suficiente para lavar o equivalente a mais de 4.200 caminhões de madeira.

“Estou impressionado”, disse Gustavo Pinheiro, que trabalhou durante mais de uma década em organizações como a The Nature Conservancy e o Instituto Clima e Sociedade. “Sabíamos que havia problemas técnicos nestes projetos, especialmente no Fortaleza Ituxi. Mas isso é algo muito pior. Parece que é um caso de polícia”.

Leia a reportagem completa no Mongabay Latam: acesse AQUI

Este  relatório faz parte do projeto Carbono Turvo, uma aliança que investiga o funcionamento do mercado de carbono na América Latina e inclui Agência PúblicaInfoAmazoniaMongabay BrasilSumaúma (Brasil), Rutas del Conflicto e Mutante (Colômbia), La Barra Espaciadora (Equador), Prensa Comunitaria (Guatemala), Contracorriente (Honduras), El Surtidor (Paraguai), La Mula (Peru) e Mongabay Latam, e é liderado pelo Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística (CLIP, na sigla em inglês). Design da logomarca: La Fábrica Memética.

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