O Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) ingressou com uma ação contra o governo federal com pedido de indenização de 283,8 milhões de reais pelos danos causados à floresta e aos moradores da reserva no Acre (Foto: Katie Maehler/Mídia NINJA) [CC-BY-NC]

Resex Chico Mendes quer ser indenizada pela União

Xapuri (AC) – Um pedido de indenização no valor de 283,8 milhões de reais contra a União por danos decorrentes do desmatamento e pelas consequências sofridas pelas comunidades da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no Acre, está em curso na Justiça Federal. A Ação Civil Pública (ACP) motivada pela omissão do Estado nas ações de fiscalização foi protocolada em dezembro de 2022 pelo Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) e apresentada aos moradores da reserva durante a 33ª Semana Chico Mendes, realizada entre 17 e 22 de dezembro nos municípios de Xapuri e na capital Rio Branco.

A Resex Chico Mendes é uma das mais icônicas Unidades de Conservação de Uso Sustentável do Brasil e uma das mais ameaçadas pela intensificação do desmatamento e das queimadas. De acordo com Willian Flores, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) que elaborou o parecer técnico para embasar a ACP, houve a queimada de 147 mil hectares dentro da reserva no período de 2005 a 2021. E nos anos de 2019, 2020 e 2021, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), as ocorrências de derrubada de mata mostram uma mudança sem precedentes no padrão do desmatamento e do comportamento dos invasores. Se em 2017 a taxa de desmatamento foi de 2.112 hectares, em 2021 saltou para 8.803 hectares, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A Chico Mendes abrange 970 mil hectares, é subdividida em 47 seringais e abrange sete municípios (Assis Brasil, Brasiléia, Capixaba, Epitaciolândia, Rio Branco, Sena Madureira e Xapuri). Foi criada em 1990 e é uma Unidade de Conservação Federal administrada pelo Instituto de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que também é citado na ação por omissão na gestão do local, assim como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A Resex, berço do movimento extrativista, possui um histórico de conflitos com grileiros, pecuaristas e fazendeiros que enxergam a floresta como terra vazia, como modo de acumulação de propriedades e fonte de renda especulativa.

Mata adentro

Raimundo Mendes, primo de Chico Mendes (Foto: Marcelo Dagnoni/CCM)

O professor Willian Flores afirma que a mudança no comportamento dos invasores pode ser explicada por uma interiorização no processo de desmatamento. Se antes as áreas estavam concentradas no limite da BR-317, agora elas avançaram para além da borda com a rodovia, com grandes áreas sendo desmatadas mais adentro da reserva. Isso revela que as derrubadas podem estar sendo patrocinadas por grandes latifundiários em busca de ampliar as áreas para formação de pasto. A criação de reservas extrativistas era o que movia a luta do líder seringueiro Chico Mendes, que acreditava ser possível obter renda com a exploração sustentável dos recursos naturais. Chico Mendes foi assassinado em 22 de dezembro de 1988, na porta dos fundos da sua casa, em Xapuri.

“Além de um aumento da área derrubada, há grandes desmatamentos em áreas isoladas, que são mais custosas para se fazer. Tudo isso mostra um descontrole, uma ausência de ação pública, de comando e de controle, e de não produzir alternativas de uso sustentável para essa região, pois não se conserva só com repressão. Se as pessoas passam dificuldades, elas vão arrumar seus meios”, afirma o professor Flores.

Raimundo Mendes de Barros, de 77 anos, primo, companheiro de luta de Chico Mendes e morador da Resex, afirma que há extrativistas vendendo pedaços de terra para pessoas que chegam de fora. “Minha esperança é que com essa ação a gente dê um basta nessa desordem que está dentro da nossa reserva, com nossos companheiros se dando o direito de vender o que não é propriedade deles porque não somos proprietários, somos legítimos possuidores e cuidadores, foi para isso que a gente lutou e foi isso que o Chico em vida defendeu para que a nossa categoria pudesse ter sossego”, diz. “Estão entregando um bem tão precioso que é a nossa floresta a preço de nada. E os que estão comprando precisam ser punidos com rigor porque estão destruindo a nossa vida.”

Símbolo da preservação

Resex Chico Mendes, uma das mais desmatada de 2019 até 2021 (Foto: SOS Amazônia/2020)

Apesar de ser símbolo da luta dos povos extrativistas, a Resex Chico Mendes atualmente também detém o maior índice de perda florestal dentre as Áreas Protegidas da Amazônia Legal, com 8% de sua área já destruída pelo desmatamento, num total de 78,9 mil hectares derrubados até 2021, de acordo com os números apresentados por Flores. Segundo dados do Inpe, essa foi a quinta unidade de conservação federal na Amazônia com maior incremento de desmatamento entre 2019 e 2021, com 223,2 quilômetros quadrados de área de floresta perdida. No Acre, ela aparece disparada na frente no ranking do estado.

Para além dos dados apresentados por Flores, o Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD), fornecido pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), confirma a situação alarmante da Resex Chico Mendes. Segundo o SAD, a unidade ficou entre os primeiros lugares do ranking entre setembro e novembro de 2022, acumulando 42 quilômetros quadrados de área desmatada. Só em setembro, quando ocupou o primeiro lugar entre as unidades de conservação, foram quase 26 quilômetros quadrados de desmatamento.

Outro indicativo do descontrole mencionado pelo professor da Ufac é o aumento da construção de vias de acesso, os chamados ramais, pois existe uma correlação entre a quantidade de novas estradas que se abrem e o desmatamento: em torno de 80% de todo desmatamento ocorrido na Resex está a até cinco quilômetros de distância dos ramais.

Na Chico Mendes, de acordo com o estudo de Flores, a última década foi crucial para a abertura de novas vias. Até 2019 havia cerca de 940 quilômetros de ramais no interior da Resex. Entre 2010 e 2019 a taxa média de aumento da extensão de ramais foi em média de 60 quilômetros por ano. Houve um aumento expressivo na abertura de estradas em 2018 (112 quilômetros, correspondendo a um crescimento de 180%) e 2019 (155 quilômetros, 258%).

Intensificação dos conflitos

Mary Allegretti durante Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: Marcelo Dagnoni/Divulgação)

De acordo com Mary Allegretti, presidente do IEA, a ação foi elaborada a partir de um pedido de Angela Mendes, filha de Chico Mendes. “O que a gente quer é que não fique por isso mesmo. Não é uma solução mágica, é uma guerra, mas agora temos um instrumento na mão para enfrentar essa batalha. E esse é o espírito que sempre marcou as lutas e o trabalho no Acre”, explica. O IEA foi fundado em 1986 com o objetivo de apoiar o Conselho Nacional dos Seringueiros, hoje Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), a desenvolver a proposta de criação e implementação de Reservas Extrativistas. Allegretti foi amiga pessoal de Chico Mendes.

Angela conta que o pedido para que algo fosse feito nasceu de um momento de desespero e angústia durante o governo do presidente Bolsonaro, ao perceber que o desmatamento e as invasões se avolumavam dia após dia. Foi quando decidiu pedir ajuda ao IEA. “Em conversas com as lideranças da Resex descobri um cenário bem ruim. As associações dos moradores estavam enfraquecidas e isso resulta num processo cada vez mais forte de invasão e descaracterização porque não tem ninguém que controle. Em contrapartida, as facções criminosas se fortalecem e dominam o espaço, expulsando os moradores. Fiquei desesperada ao ver esse cenário e pedi socorro”, afirma. Para ela, não se trata de uma indenização com caráter apenas punitivo, mas também com o objetivo de ser educativa e restauradora para frear o desmatamento.

Genésio Natividade, advogado que elaborou a ACP, afirma que o objetivo é responsabilizar a União pela omissão ao não tomar as medidas de políticas públicas para fiscalizar e proteger a Resex Chico Mendes. “É preciso reparar os danos e nesse sentido a ação tem um caráter educativo. O desmatamento da área envolve toda a coletividade e a dificuldade em manter suas tradições e cultura. Esse é um valor estimado, que tem como objetivo pautar uma discussão não só regional, mas sim nacional.”

Se procedente, a ação terá como resultados a implementação e execução de planos e políticas de restauração, controle e fiscalização ambiental para a Resex Chico Mendes;  uma indenização pelo danos materiais decorrentes do desmatamento, em pelo menos 183,8 milhões de reais e dos danos morais coletivos sofridos pelas comunidades extrativistas em no mínimo 100 milhões de reais e declaração de que a União e suas entidades estão violando a legislação ambiental e constitucional.

O valor de 100 milhões de reais, explica o advogado, é para que haja uma compensação legítima pelas omissões e insuficiência na adoção de medidas eficazes para controlar, fiscalizar, e mitigar o desmatamento que assola a Resex e que afeta o modo de vida, a cultura, a economia e a existência da comunidade tradicional extrativista. O valor deverá ser revertido a projetos de recuperação ambiental e de desenvolvimento socioeconômico e valorização da biodiversidade no território da Resex.

O Ministério Público Federal do Acre (MPF-AC) acatou o processo e vai atuar na ação. Lucas Costa Almeida Dias, procurador regional dos Direitos do Cidadão do MPF (Ministério Público Federal) do Acre, afirmou durante a Semana Chico Mendes que se trata da primeira ACP no estado com esse aprofundamento ambiental. “Estamos falando de um trabalho de primeiro nível, de algo muito novo. E por ser muito novo é mais difícil porque pode haver resistência. Esse é o primeiro passo, mas não o último.”

Semana Chico Mendes

  • Oração de familiares e amigos durante a Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: Marcelo Dagnoni/Divulgação)
  • Ângela Mendes com a filha durante a Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: Marcelo Dagnoni/Divulgação)
  • Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: Marcelo Dagnoni/Divulgação)
  • Raimundo Mendes durante a Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: Marcelo Dagnoni/Divulgação)
  • Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: @moisesmualem – WWF Brasil)
  • Semana Chico Mendes 2022 em Xapuri, Acre (Foto: Marcelo Dagnoni/Divulgação)

 

Organizada pelo Comitê Chico Mendes, a semana que homenageia o líder extrativista é uma forma de reafirmar os compromissos com as lutas socioambientais dos povos tradicionais e originários e acontece todos os anos. Em 2022, a Semana Chico Mendes teve como tema “Amazônia e Emergência Climática Reflorestando: o pensamento a partir das vozes da floresta.”

Dezembro é o mês que marca o nascimento e a morte de Chico. Foi no Seringal Porto Rico, em Xapuri, no dia 15 de dezembro de 1944 que ele nasceu. No dia 22 de dezembro de 1988, aos 44 anos, ele é assassinado por fazendeiros com um tiro de escopeta que acerta o seu peito.

Na programação da semana, além de palestras e apresentações sobre o atual contexto da reserva, também foram realizados debates e premiações, além de  uma caminhada por Xapuri, que passou pela casa onde Chico vivia e também pelo seu túmulo. Durante o percurso, amigos do líder seringueiro relembraram a luta do companheiro e como receberam a notícia da sua morte. Ainda hoje, mais de três décadas depois, todos se emocionam ao relembrar da data. Angelica Mendes, neta de Chico, lamentou pelo avô que não conheceu. “Todos diziam que ele era muito bom com as crianças e ele morreu sem saber que seria avô.” Angela estava grávida de Angélica quando o pai foi assassinado. Ela não sabia da gravidez.

A casa de Chico Mendes, que já foi um museu, está fechada desde 2019, com a chegada do governador Gladson Cameli ao poder. Era o estado quem bancava, até então, a manutenção do local. Durante as celebrações da Semana Chico Mendes, o prefeito de Xapuri, Bira Vasconcelos (PT), afirmou que a prefeitura vai assumir a conservação da casa e reabri-la ao público. No entanto, não deu prazo para isso.

*A repórter Maria Fernanda Ribeiro viajou para Xapuri (AC) a convite do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA)

Fonte: Amazônia Real

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