Por Fernanda Venzon
No mês passado, ao ler uma decisão da justiça federal do Acre, que negou um pedido de liminar, tive uma desagradável sensação de déjà vu. Lembrei de uma série de outros casos em que o poder judiciário deixou a bola rolar, por assim dizer, sem medir as consequências de postergar a decisão mais importante do processo. Ocorre que o timing é tudo nesses casos. Alguém conhece algum grande projeto de infraestrutura que, uma vez iniciado com irregularidades, tenha primeiro solucionado essas questões, para só então dar continuidade à obra?
Lembrei em particular dos fundamentos jurídicos que foram utilizados, ainda em 2006, para permitir a continuidade do processo de licenciamento da usina de Belo Monte sem a necessidade de consulta prévia às populações indígenas afetadas sobre o Decreto 788/2005, que autorizou a construção da usina. Em uma sentença daquele ano, a justiça federal considerou que os estudos de impacto ambiental seriam “determinantes” para viabilizar a obra, ou seja, que somente se os estudos realizados fossem favoráveis e se eles fossem aprovados pelos órgãos competentes é que poderia vir a ser implantado o empreendimento. A justiça federal também considerou que, para que os estudos pudessem ser aprovados pelas autoridades competentes, eles teriam que ser submetidos à oitiva das comunidades afetadas o que “sem sombra de dúvida” influenciaria na decisão final quanto ao licenciamento da obra. Tudo isso foi confirmado pelas instâncias superiores, que deixaram claro que os estudos condicionariam a aprovação do projeto. Essa era a expectativa. Agora vamos à realidade. Em 2009 a equipe do IBAMA que deveria analisar o resultado das audiências públicas informou que, por falta de tempo, não havia concluído sua análise a contento e que algumas questões não haviam podido ser analisadas na profundidade apropriada, entre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas. Por isso, concluiu pela impossibilidade de atestar a viabilidade ambiental do projeto. Ato contínuo, em 2010, foi concedida a licença prévia para a usina e atestada a sua viabilidade ambiental sem suporte técnico. O resto é história. O caos ambiental e social criado pela construção da usina é amplamente conhecido.
O caso do Acre que mencionei ao abrir este artigo é o da extensão da BR-364. Atualmente a BR-364 chega até o município de Cruzeiro do Sul. O trajeto de 600 km a partir da capital chega a levar 15 horas em razão da falta de manutenção da estrada. A ideia agora é ampliá-la por 110 km em área de floresta habitada por comunidades tradicionais e povos indígenas, inclusive em isolamento voluntário, até um ponto na fronteira do Brasil com o Peru dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor, local de maior biodiversidade da Amazônia. A construção de uma BR dentro de um Parque Nacional é vedada por lei e por isso os patronos da construção apresentaram Projeto de Lei para remover esse pequeno empecilho. Em dezembro de 2021, o governo federal contratou, com dispensa de Estudos de Viabilidade Técnico, Econômico e Ambiental (EVTEA), um consórcio de empresas para realizar os estudos e projetos básicos e executivos de engenharia para a construção. Você leu corretamente, os EVTEA, que são obrigatórios, foram dispensados. Para isso bastou a afirmação de que se trataria de questão de “segurança nacional”. Abundam outras ilegalidades que, por falta de espaço no texto, deixarei de mencionar.
E o que motiva o projeto de extensão da BR? Bem, há argumentos explícitos e outros não. O mais utilizado pelos promotores da estrada é o que eu chamaria de “fantasia de integração econômica entre Brasil e Peru”. Existe essa idealização de que uma segunda estrada ligando o Acre ao Peru (sim, já existe uma) traria a tão sonhada integração econômica e possibilitaria o desenvolvimento econômico da região. É uma fantasia porque não há estudos que demonstrem a viabilidade do empreendimento. E não há estudos porque, se fossem realizados, provavelmente jogariam um balde de água fria nas fantasias, digamos, mais quentes, de integração econômica. Isso sem falar que o Peru não deu match e já anunciou publicamente que não vai construir uma estrada no meio da floresta que causaria enormes danos a áreas protegidas e povos indígenas. Sendo assim, a extensão da BR-364 no Brasil ligará Cruzeiro do Sul a lugar nenhum, digo, a um ponto remoto na fronteira, a um custo estimado de 500 milhões de reais, excluída a manutenção de 220 milhões de reais a cada seis anos. Será uma forma de facilitar o acesso público à floresta hoje conservada. Provavelmente criará também uma rota mais ágil para o pessoal do tráfico que atua na região de forma precária.
Agora vamos ao detalhe das decisões judiciais no caso da BR que me trouxeram aquele desagradável flashback. A justiça federal decidiu que os estudos de engenharia que foram contratados [por seis milhões de reais, faltou mencionar] e que somente poderiam haver sido contratados após atestada a viabilidade econômica e ambiental pelos EVTEA, seriam os estudos onde se analisariam as questões pendentes que não foram analisadas nos EVTEA que foram dispensados. Só que não, porque não é esse o objeto dos estudos de engenharia que foram contratados. A justiça também entendeu que a realização dos estudos de engenharia não causaria qualquer dano aos interessados.
Gostaria de concluir por onde comecei. Em mais de uma década acompanhando processos judiciais como os que aqui mencionei, não apenas no Brasil, mas em vários outros países, tenho muito claro que nosso maior desafio como defensor@s do meio ambiente e dos direitos humanos e como litigantes é convencer o poder judiciário a tomar a decisão correta no momento oportuno. Ainda tenho uma ponta de esperança de que a justiça federal do Acre leia com atenção os argumentos apresentados por cinco organizações da sociedade civil na ação civil pública ajuizada em face da União Federal e da empresa vencedora do certame.
Fernanda Venzon é advogada líder para a América Latina no Environmental Defender Law Center