Por Montezuma Cruz, dos varadouros de Porto Velho, para O Varadouro
Livro de cientista social mostra, com dados científicos, como a tríplice divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia (Amacro) se consolidou como a nova fronteira do desmatamento na Amazônia, a partir da ampliação das áreas de monocultura e da pecuária. Uma expansão que pressiona regiões preservadas de floresta (incluindo UCs e terras indígenas) e faz migrar a dinâmica do desmatamento para so vales do Purus e do Juruá.
Apesar da verticalização dos crimes de grilagem e outros vinculados diretamente à expansão desenfreada da agropecuária, o apoio oficial do governo permitiu o “estouro da boiada” na Amazônia Ocidental Brasileira. Não fossem os números convincentes seria “chover no molhado” afirmar que a Amacro, a tríplice divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia, é a nova fronteira de morte e destruição no país. No geral, as áreas de pastagem ultrapassam a 50% e chegam a 70% das extensões de terras municipais, conforme dados levantados e divulgados em 2021 pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Goiás.
Conclusão desse e de outros estudos acadêmicos: a pecuária avançará cada vez mais sobre áreas protegidas. Na Amazônia, as áreas de pastagem que ocupavam 13,7 milhões de hectares em 1985, cresceram para 57,7 milhões de hectares em 2022. Em Porto Velho, nas últimas décadas, o desmatamento expôs a prática do consórcio entre derrubadas ilegais e pecuária.
Estes e muitos outros dados estão na mais completa obra já escrita sobre a nova fronteira do desmatamento e de crimes ambientais na tríplice divisa: “Amacro – a Reorganização do Capital no Campo na Amazônia”, do pesquisador Afonso Chagas. Membro do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Chagas é hoje a maior referência acadêmica da região Norte nos estudos sobre a Amacro.
“Há uma evolução própria que identifica esse ciclo em que os monocultivos (soja e milho) pressionam e empurram a pastagem, esta avança sobre a floresta, direcionando-se, sempre, para novas frentes de expansão. Portanto, o caminho da pastagem de hoje tornar-se-á o mesmo itinerário da soja, de logo mais, e a pecuária avançará sobre áreas protegidas ou, ainda, áreas públicas não destinadas”, assinala o pesquisador.
Em 2023, durante visita a Rio Branco, o cientista social conversou com Varadouro para falar sobre os impactos da Zona Amacro. Na ocasião, ele já alertava: o agronegócio tem como objetivo avançar seus tentáculos para regiões preservadas da Floresta Amazônica, como os Vales do Purus, do Juruá e do Javari.
Tirada do papel pelos três governadores bolsonaristas da região – Gladson Cameli (AC), Marcos Rocha (RO) e Wilson Lima (AM), a zona Amacro tem como objetivo repetir o modelo Matopiba, que é uma zona de desenvolvimento formada pelas divisas do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia.
Aqui nesta porção do território brasileiro, a Amacro é conhecida como um projeto do agronegócio a colocar em risco a preservação e a manutenção do bioma amazônico. A expansão da soja e da pecuária ainda provocam intensos e violentos conflitos fundiários, com denúncias de torturas e assassinatos. Muito mais do que uma zona de expansão do agronegócio, a Amacro transformou-se num faroeste Amazônico, onde a pistolagem e a lei do mais forte parecem ditar as regras.
Diante de tantas repercussões negativas, os patrocinadores mudaram o nome de Zona Amacro para Zona de Desenvolvimento Madeira-Abunã. A zona é composta por 32 municípios dos três estados, compondo uma área de 45 milhões de hectares.
Neste rastro de devastação do agro sobre a floresta, nem mesmo as unidades de conservação e as terras indígenas passam incólumes. Não por acaso, como um único exemplo, a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, localizada no sudeste do Acre, e uma das áreas abarcadas pela zona Amacro, desde 2019 ocupa as primeiras posições no ranking de desmatamento entre as áreas protegidas da Amazônia Legal.
Também localizada no coração desta nova-velha área de expansão do agronegócio está a Terra Indígena Karipuna, em Porto Velho, alvo constante da invasão por madeireiros e grileiros de terras públicas. A vizinha Resex Jaci-Paraná há tempos já virou pasto – em grande parte com o aval das autoridades rondonienses. No sul do Amazonas, a Floresta Nacional do Iquiri é também alvo constante de invasões.
A bovinização da Amacro
Em algumas situações, durante 20 anos (2003-2023), o rebanho bovino duplica, noutra triplica, estabelecendo recordes nacionais, caso de Boca do Acre (AM), Manoel Urbano (AC) e Nova Mamoré (RO), a 281 quilômetros de Porto Velho. Neste último, duas décadas atrás havia, ali, 167,7 mil cabeças de gado, e em 2022 o rebanho chegou a 1,01 milhão, com variação de 502,7%.
Os números estimulam o debate dessa realidade. Em 2003, o Acre contava com um plantel bovino de 1,6 milhão de cabeças, chegando a 2022 com 4,3 milhões (variação de 219,6%). Uma quantidade três vezes maior que a população do estado. Entre os estados da Amazônia Legal, o Acre tem o quarto maior rebanho bovino.
Com a consolidação da monocultura da soja no leste acreano a partir de 2019, o estado observa hoje uma forte migração da pecuária bovina rumo ao oeste, pela BR-364 entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul. De acordo com dados do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf), as propriedades localizadas nos vales do Purus, Tarauacá/Envira e Juruá registram a presença de 1,5 milhão de bois.
Estatística concluída em 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela altíssima discrepância no Acre: Sena Madureira, município a 142 quilômetros de Rio Branco, possuía 61,4% de seu território ocupado pela pecuária, 36,5% por pastagem, e apenas 0,9% por lavoura branca. Em Sena, o boi para corte estava espalhado por 71,2% de sua área geográfica, na qual produtos agrotóxicos estavam presentes em 48,1%.
Segundo o laboratório da universidade goiana, Rondônia aumentou 34% suas áreas de pastagem; o Acre, 41%; e o sudoeste amazonense, 70,6%. Não por acaso (outra vez), os municípios nesta região do Amazonas são os líderes em taxas de desmatamento e queimadas na Amazônia Legal, com destaque para Lábrea, Boca do Acre, Humaitá e Apuí.
Entre os municípios da Amacro, foi no sudoeste amazonense que a pecuária mais se acentuou. Em 2010 o autor desta reportagem e o jornalista Elson Martins constatavam a chegada de baianos e gaúchos a Boca do Acre, distante 1,5 mil km de Manaus e 220 de Rio Branco. Eles adquiriram terras pela bagatela de R$ 2 mil o hectare, e derrubaram matas originais para a formação de pastagem.
Conforme o mapeamento anual, em 2023 o desmatamento ocorrido na trajetória da pecuária alcançava 64,5 milhões de hectares em seus epicentros nas regiões do Matopiba (acrônimo de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e Amacro.
Em Apuí, município com garimpos de ouro na BR-230 (Rodovia Transamazônica), a mil quilômetros de Manaus e mais próxima a Porto Velho (474 km), a pastagem ocupava 35,8% das terras destinadas à pecuária (90,01%). Lá, pulverizavam agrotóxicos em 40,3% do total explorado. Em 2003, o rebanho de Apuí era de 86 mil cabeças, crescendo para 190 mil, numa variação de 120,9%.
Já Boca do Acre, cidade situada no encontro das águas dos rios Acre e Purus, situado na extensão da BR-317, foi um dos 10 maiores desmatadores de florestas no Brasil, 15 anos atrás. Suas lavouras não passavam de 2,9%, enquanto bois de corte ocupavam 41,03% do município, e os pastos, 41,03%. Resultado: passou de 39,94 mil cabeças em 2003 para 237,5 mil em 2022, numa variação recorde nacional: 494,5%.
Nova Mamoré, em Rondônia, passou de 167 mil para 1,1 milhão de cabeças (variação de 502,7%), outro recorde. Acrelândia, a 121 km de Rio Branco, possuía 62,2% de atividade pecuária, apenas 2,9% de lavoura, 58,1% de pastagem e um derrame de herbicidas por 75,6% da extensão de suas propriedades.
Menos envenenada (35,6%), Xapuri apresentava 52,4% de fazendas, ínfimo 0,6% de lavouras, 21,6% de pastagem, e do total geral, 63,6% formadas por bovinocultura de corte. Ali, ainda nos anos 1980, seringueiros resistiram o quanto puderam à formação de fazendas de gado pelos “paulistas”, Eram eles, desde o início dos anos 1970, convidados especiais dos governos acreanos “para desenvolver o estado” instalado em 1962.
Outro salto surpreendente ocorria em Senador Guiomard (Quinari),: a pecuária ocupava 72,6%, a lavoura, apenas 2,3%, enquanto a pastagem abrangia 71,08%, com predominância de 52,7% de bois para corte. Agrotóxicos foram aplicados em 41,2% das áreas.
“Aqui em Rondônia são 53 Unidades de Conservação (UCs) e 23 Terras Indígenas. É um absurdo o que se faz no Brasil usando o nome ambiental; isso aí tem inibido o progresso daqueles que querem investir no agronegócio e até na agricultura familiar. Vamos achar um ponto de inflexão nisso” (Jair Messias Bolsonaro, em 31 de outubro de 2018 discursando em Rondônia).
Como grande parte das situações não é mera coincidência, a zona Amacro ficou conhecida, a partir de 2019, como a nova fronteira do desmatamento na Amazônia – e também uma zona para a prática de muitos delitos ambientais e de violações de direitos humanos.
Efeitos “letais e funestos”
Pecuaristas do Acre poderiam chamá-lo a defender agora seus rebanhos, mas ele não virá, pois atentou contra a democracia – aquela senhora que, sob o governo Lula, concedeu mais de R$ 300 bilhões ao agronegócio. Mesmo assim, eles ainda achincalham o governo cuspindo no prato em que comem.
“Na linha traçada pelo “arco do desmatamento” é possível facilmente constatar uma brutal correlação entre desmatamento e avanço da frente agropecuária, como faces indivisíveis do mesmo processo. No entanto, essa conexão traz consigo outros efeitos, tão letais e funestos e que impactam e agridem não só o ambiente, com todos os seus recursos, mas também os povos que nesse ambiente vivem, sobretudo as comunidades e os povos tradicionais”, apura a equipe coordenada pelo pesquisador Afonso Chagas.

O braço Rondônia da Amacro é igualmente preocupante: a 250 km de Porto Velho, Monte Negro, onde ainda existe no subsolo a cassiterita (minério de estanho) e minerais estratégicos, possuía 89,1% de áreas com pecuária, 74,2% com pastagem, ambas (62,03%) “arejadas” com agrotóxicos.
Campo Novo de Rondônia outro antigo território garimpeiro, possuía 92,8% de atividade pecuária, 76,4% de pastos e uma carga herbiquímica espalhada por 62,04% das propriedades.
Outro fenômeno mineral, Itapuã do Oeste também faz parte dos números reveladores do IBGE: se nas décadas de 1960 e 1970, ainda distrito de Porto Velho, sua cassiterita era explorada pela multinacional canadense Brascan, oito anos atrás possuía 79,7% de suas terras exploradas pela pecuária, com 63% de pastagem, 51,1% de gado de corte, e cargas de veneno em 60,2% de toda a área.
Quem “põe comida” na mesa?
Um dado interessante revela o contraditório nem sempre devidamente esclarecido nos boletins e bancos de dados dos governos dos três estados que compõem a Amacro: municípios de Rondônia respondem por 44,7% da ocupação da agricultura familiar.
O Acre com 34,5% e o Amazonas com 20,7% complementam o perfil regional. Já a ocupação agropecuária não-familiar entre todos os 32 municípios da Amacro, conforme o levantamento do IBGE, aponta que esses estabelecimentos estariam 45% na região de Rondônia, 38,7% no Acre, e 16% nos municípios da sub-região do Amazonas.
Ou seja: abacaxi, açaí, arroz, alface, banana, café, cacau, castanha (vendida a exportadores), inhame (também fornecido a europeus, via compradores nordestinos), cupuaçu, feijão, mandioca, mel de abelha, pepino, repolho, são produtos que saciam a fome da região.
Isso implica dizer: quem põe comida na mesa do povo (linguagem do agronegócio) é a agricultura familiar, não os exportadores de commodities. A maior parte da carne bovina rondoniense, por exemplo, abastece mais de 150 países europeus, asiáticos e da América do Norte.
São camponeses e assentados já sitiantes que plantam e colhem para o autossustento e venda em feiras-livres alguns produtos já considerados pela Embrapa “os melhores do Brasil”, a exemplo da castanha do Acre e de Rondônia; o café robusta rondoniense (também exportado), e a farinha de Cruzeiro do Sul.
A Rondônia Rural, em Ji-Paraná, considerada pelo Ministério da Agricultura o maior evento agropecuário do norte brasileiro, foi criada em 2012, com base na agricultura familiar. “Um desafio de Afonso Florence (ex-deputado federal baiano) que eu encarei quando governador”, repete o senador, ex-deputado federal, ex-prefeito e ex-governador de Rondônia Confúcio Moura.

O livro de Afonso Chagas demonstra que a transformação dos projetos de assentamento e de colonização em extensas áreas de pastagem, sempre exigindo mais terras, “potencializa a reconcentração fundiária, ao mesmo tempo em que impõe grandes deslocamentos humanos, sobretudo do campesinato, em busca de terra para viver e sobreviver.”
Paralelamente ao ato voluntário, o autor e sua equipe notaram que isso possibilitou a invasão de terras públicas, “não destinadas ou destinadas”, áreas indígenas, áreas protegidas, localizadas ao norte de Rondônia, leste do Acre e sul do Amazonas.
Lei de investimentos
Outro fator a considerar, em termos de fomento e incentivos fiscais nos estados da região: a denominada “agropecuária de integração”. Afonso Chagas menciona a Lei nº 13.288/2016 como “pavimentadora do caminho” para transformar cada vez mais as terras como ativos imobiliários – regidos pelo capital financeiro – enquanto nova forma de expansão sobre a Amazônia.
Ele cita relatório produzido pelo Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura de Terra no Brasil (MAPBIOMA, 2023) para lembrar: “A Amazônia acabou superando o Cerrado com maior território de pastagens no Brasil. (…) Entre 1985 e 2022 (pós-ditadura militar), entre os cinco estados com maior desmatamento para a conversão em pastagem alinham-se: o Pará (18,5 milhões de ha), Mato Grosso (15,5 milhões), Rondônia (7,4 milhões), Maranhão (5,4 milhões) e Tocantins (4,5 milhões).”
