Por Jullie Pereira, para o InfoAmazônia
De acordo com um estudo de pesquisadores do Pará, Amapá e São Paulo, 265 pequenas cidades da Amazônia, de um total de 671, estão altamente expostas aos efeitos das mudanças climáticas. Pará, Amazonas e Maranhão concentram 70% desses municípios mais vulneráveis.
Quase 30% das cidades (265) com até 50 mil habitantes da Amazônia apresentam um alto grau de vulnerabilidade em relação a eventos extremos, como as secas e enchentes. Esse é o resultado de um estudo realizado por pesquisadores do Pará, Amapá e São Paulo, que analisou as características de 671 pequenos municípios — que cobrem 87% da região amazônica — e avaliou como eles estão preparados para lidar com os efeitos das mudanças climáticas.
Na investigação, os autores consideraram o nível de acesso ao tratamento de esgoto, à destinação adequada dos resíduos e ao abastecimento de água potável, além da presença de moradias inacabadas e degradadas, o número de crianças e idosos, a incidência de malária, a taxa de mortalidade recente pela Covid-19 e o Produto Interno Bruto (PIB) municipal. Eles criaram uma classificação por meio de um índice que varia de 0 a 1, onde 0 representa uma vulnerabilidade muito baixa aos eventos extremos e 1, uma vulnerabilidade muito alta. O valor aumenta conforme a propensão das populações a sofrerem perdas e danos causados por eventos extremos.
Dentre os 265 pequenos municípios identificados como altamente vulneráveis, 187 (70%) estão em três estados: Pará (73) — que concentra os 11 com o maior índice da pesquisa —, Maranhão (77) e Amazonas (37). Em seguida, há cidades no Mato Grosso (25), Rondônia (20), Acre (14), Roraima (7), Tocantins (7) e Amapá (5).
Pará, Amazonas e Maranhão reúnem municípios mais vulneráveis às mudanças climáticas da Amazônia
O estudo analisou as cidades com até 50 mil habitantes e considerou aspectos sociais, ambientais e econômicos para determinar a vulnerabilidade em caso de eventos extremos. Veja o mapa de vulnerabilidade climática por cidade AQUI.
O estudo afirma que os fatores que mais aumentam o grau de vulnerabilidade das cidades são a precariedade da mobilidade urbana, a dificuldade de acesso à internet e aos meios de comunicação, e a falta de serviços médicos. “Esses elementos combinados, infelizmente, revelam um perfil de pobreza generalizado ao longo dos pequenos municípios amazônicos”, diz um trecho do artigo.
Situações extremas
A cidade de Eirunepé, no interior do Amazonas, fica às margens do rio Juruá e foi classificada pelos pesquisadores como altamente vulnerável. O local enfrentou chuvas anormais, que causaram enchentes e alagamentos em fevereiro. Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o volume de chuva esperado para aquele mês era de 303,8 milímetros, mas o registrado foi de 423,2 milímetros, um aumento de 40%. No mês anterior, em janeiro, a situação era oposta: a média esperada era de 325,5 milímetros, mas choveu apenas 13,2 milímetros, uma redução de 96%.
A variação da chuva continuou no decorrer do ano e Eirunepé é um dos municípios que enfrenta uma grave seca neste ano. O secretário da Defesa Civil da cidade, Benedito Rondinelli, disse à InfoAmazonia que a maior preocupação é conseguir chegar às famílias ribeirinhas, mais impactadas com a falta de infraestrutura e de mobilidade. “As balsas já não chegam mais no município, os voos estavam interditados por conta dessa fumaça que atingiu praticamente todo o Amazonas. A gente está aqui em situação extrema”.
Enquanto os rios não voltam a subir, o trabalho da Defesa Civil tem sido atender as comunidades. Rondinelli afirma que está distribuindo cestas básicas e água potável, mas as distâncias atrapalham o serviço. “Ficou muito ruim para eles pegarem peixe, já não tem mais praticamente o que comer. Então, a gente está orando a Deus para que a chuva venha rápido”.
Os pesquisadores explicam que os indicadores que compõem o índice de vulnerabilidade do estudo, como o acesso à comunicação e ao transporte público, são os únicos que podem ser alterados por políticas públicas locais, como das prefeituras. Isso ocorre porque o aumento dos eventos extremos também está relacionado ao aumento da temperatura e das chuvas, índices que dependem, em grande parte, de medidas de governança global e de acordos climáticos internacionais.
“Política pública é a palavra-chave para as ações direcionadas. Por isso, a gente tem que apontar um dedo para a governança. O prefeito, governador e presidente estão nas esferas governamentais que têm a caneta para fazer política pública, ninguém tem mais”, explica Everaldo Souza, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPA) e um dos autores do artigo.
Para isso, o professor afirma que as pequenas cidades também precisam avançar nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), as 17 metas estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015 e adotadas pelos países membros, incluindo o Brasil. Entre os ODS, estão a erradicação da pobreza, o desenvolvimento econômico, o acesso à água potável e ao saneamento, a saúde e o bem-estar, e a redução das desigualdades.
A defesa de um modelo ligado à preservação do meio ambiente
A urbanista e professora da UFPA, Ana Claudia Cardoso, afirma que as cidades da Amazônia foram estruturadas a partir de modelos desenvolvimentistas, consolidados desde a década de 1970, com o objetivo de criar cidades seguindo a lógica urbana que hoje conhecemos. Isso resultou na destruição das florestas, na construção de estradas, casas de alvenaria e prédios administrativos na região.
Ela explica que esse modelo “importado” de urbanização se distanciou dos conhecimentos tradicionais dos povos da região, o que incentivou o desmatamento e levou à criação de áreas que hoje sofrem com os impactos das mudanças climáticas e estão vulneráveis, como as cidades analisadas no estudo.
“Há a indução de políticas públicas que forçam um processo de homogeneização e colonização na região [amazônica], para que ela se torne igual àquilo que é tomado como regra, e isso tem nos afastado dessa capacidade ancestral de planejar os processos da natureza”, explica a professora.
Cardoso afirma que as populações eram mais conectadas com os conceitos de preservação da floresta e de manutenção do bem-estar, mas isso mudou à medida que foram adotando conceitos oriundos de conhecimentos não indígenas. Não existia, por exemplo, a distinção entre urbano e rural, dois termos que indicam a separação entre o que é planejado para as cidades e para as comunidades mais próximas dos rios. Para ela, essa visão que separa as cidades e a floresta está impedindo a implementação de medidas efetivas para enfrentar os problemas ambientais e climáticos.
“A seca extrema que tem promovido a matança de peixes e deixado povos indígenas isolados é resultado de políticas públicas que induziram uma série de usos da terra, e o pior é que não estamos regenerando aquilo que permitia que os sistemas fossem mais resilientes, que era regenerar floresta”, diz a professora.
Lilian Souza, assistente social e ativista, conhece bem a diferença apontada por Cardoso entre os projetos pensados para as áreas rurais e urbanas. Ela mora em uma comunidade no ramal São José, na zona rural do município de Careiro, no Amazonas, a 100 km de Manaus. De acordo com a classificação do estudo, a cidade é altamente vulnerável aos eventos extremos. Souza afirma que o acesso à educação, à saúde e até a outros serviços básicos, como energia elétrica, é difícil na sua região.
“As escolas não têm nenhuma estrutura, e as comunidades não possuem poços de água. Quando têm [poços], eles não têm profundidade suficiente para garantir água durante o ano todo. Quando chega a época da seca, o poço também seca”, diz.
Com uma população de 30,7 mil pessoas, o município não possui Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Em caso de um desastre ambiental que prejudique a saúde de um morador, ele precisará ser transferido para a capital, Manaus. Para isso, um deslocamento de, em média, quatro horas deverá ser realizado.
“Quando a gente fala que é do Amazonas, as pessoas de fora ficam até encantadas, pensando nas belezas que temos aqui. Mas vivemos em cima da riqueza e ao mesmo tempo somos um povo pobre, infelizmente. Quando a gente vai conhecendo a realidade, vemos que as pessoas não têm acesso ao conhecimento. Elas vão aceitando tudo, sem cobrar nada”, diz Souza.
Como parte da solução, a professora Ana Cardoso afirma que o modelo tradicional de vida das comunidades indígenas precisa ganhar relevância na busca por políticas públicas. “Ainda existem outras formas de viver. As comunidades mostram que é possível e que somos capazes de coexistir com o bioma, desde que o rio não esteja totalmente contaminado, desde que a floresta não esteja pegando fogo. Os ribeirinhos, os seringueiros, todos têm uma boa relação com o território, com perspectivas diferentes das que foram colocadas pelo desenvolvimento dos municípios”, afirma.
Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Everaldo Souza, Brenda Silva, Emilene Serra, Melgris Ruiz, João Jr, Alexandre Carmo, Aline Lima, Bergson Moraes, da Universidade Federal do Pará (UFPA); Alan Cunha, da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP); Paulo Souza, Adriano Sousa, da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA); Luciano Pezzi, Peter Toledo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); Edson Rocha, Flavio Santos, do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM); Douglas Ferreira, do Instituto Tecnológico Vale (ITV); Maria Ruivo, do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG); Tercio Ambrizzi, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, Universidade de São Paulo (USP).
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori
Leia o texto na íntegra e acesse todos os infográficos AQUI.