Por Mário Menezes
Um aspecto pouco conhecido do processo que levou à criação da modalidade de Unidade de Conservação Reserva Extrativista-Resex, é a forma como as demandas socioambientais e econômicas dos seringueiros ganharam visibilidade e foram assimiladas no âmbito do Poder Público.
Tradicionalmente, os patrões seringalistas tinham o plenodomínio e usufruto da exploração dos seringais nativos, cujo modus operandi incluía os próprios extrativistas como “bens semoventes”, por serem mantidos cativos nas suas “colocações” e em regime de semi-escravidão. A precária sobrevivência dessa população estava nas mãos desses patrões, que tinham o monopólio implacável da produção e do suprimento básico dos seringueiros e de suas famílias dentro da floresta.
Influentes junto aos administradores públicos em todos os níveis, os seringalistas gozavam de poderes que mantinham essa situação de subalternidade, impondo e tutelando políticas voltadas à permanência daquela estrutura de dominação. E toda e qualquer tentativa de mudança era sufocada a qualquer custo, inclusive com assassinatos, como o de Chico Mendes, Wilson Pinheiro e outros líderes da floresta.
Estabelecido o rápido e desordenado processo de ocupação de Rondônia, cuja etapa mais agressiva teve início nos anos 60, quando ainda Território Federal de Guaporé, e que se consolidou com os projetos de colonização, implantados pelo INCRA, no inicio dos anos 70, o Acre virou a bola-da-vez do viés expansionista na Região. Lastreado pela estratégia dos militares ditadores para a Amazônia, cujo slogan “Integrar para não entregar” fazia dupla com “Gente de pouca terra para terra de pouca gente”, como se a Amazônia fosse um grande vazio a ser ocupado, esse processo instrumentalizou a geopolítica definida para a colonização regional, sem qualquer iniciativa que significasse alguma preocupação mais consistente com as questões socioambientais implicadas nesse avanço sobre o território amazônico.
E assim o sul do Acre começou a receber levas de colonos sulistas e pretendentes a proprietários de terras, numa região onde a floresta era habitada por índígenas, seringueiros e ribeirinhos, que nela e dela sabiam viver.
Com a floresta mais ocupada do que em Rondônia, essa região acreana enfrentou a pressão expansionista de forma mais reativa, e o “empate” foi a estratégia empregada pelos seringueiros para se oporem aos esquadrões de moto-serras, que avançavam sobre os seringais nativos, expulsando centenas de famílias dependentes das atividades extrativistas que a floresta ali viabilizava.
Foi esse movimento pacífico de resistência, que chamou a atenção do Brasil e do mundo, quando os extrativistas conseguiram realizar seu primeiro grande encontro fora da floresta, na Universidade de Brasília, em 1985, seguido de idas de Chico Mendes ao Congresso Nacional e aos gabinetes em Brasília, para denunciar a ameaça que os desmatamentos significavam para a Amazônia.
Mas foi no INCRA, em 1987, que a proposta dos seringueiros de garantir seus territórios e proteger a floresta recebeu guarida mais consequente, com sua incorporação à política institucional do órgão, através da criação da modalidade de assentamento, que recebeu o nome de Projeto de Assentamento Extrativista-PAE, formalizado pela Portaria INCRA 627, de 30 de julho de 1987, mais tarde denominado Projeto de Assentamento Agroextrativista. E isso em pleno Governo Sarney, avesso à Reforma Agrária, o que evidencia ainda mais a força do movimento dos seringueiros, liderados por Chico Mendes.
A diferença fundamental entre essa modalidade e as modalidades convencionais dos projetos de colonização está no fato de que os extrativistas já estão “assentados” em suas colocações há décadas, bastando o reconhecimento dessa realidade localmente, para que um PAE ou uma Resex se constitua como tal.
Do ponto de vista socioambiental e econômico, a proposta dos seringueiros era inédita e guardava uma especificidade tão especial, que podia ser atendida em duas frentes: a da Reforma Agrária e a do Meio Ambiente. Daí ser reconhecida também como Unidade de Conservação, pelo IBAMA, através do Dec. No. 98.897, de 30 de janeiro de 1990, recebendo a denominação oficial de Reserva Extrativista. Assim, são duas modalidades diferentes, para atender a um mesmo objetivo.
Na época, tanto o governo acreano, como a direção do INCRA naquele Estado, eram comandados por uma oligarquia latifundista radical, defensora dos projetos de colonização e contrária, na mesma medida, à criação de PAEs e Resex.
Apesar dessa resistência, ainda em 1987 foi criado o PAE Seringal Cachoeira, o primeiro da História e não por acaso no Acre. Hoje, depois de se juntarem aos PAEs e Resex outras modalidades como o Projeto de Desenvolvimento Sustentável-PDS e a Reserva Extrativista Marinha, centenas de áreas estão protegidas sob essas diferentes denominações. Somente na Amazônia perfazem uma extensão de25 milhões de hectares, equivalente ao território do Estado de São Paulo, que somadas às do restante do Brasil chegam a 6% do território nacional.
Não obstante essa façanha dos Povos da Floresta, com destaque para a luta dos seringueiros em protegê-la – ainda que para isso tivessem e continuam tendo que enfrentar o desenvolvimentismo depredador do latifúndio irracional -, é descabido e lastimável que o governo anterior tenha feito o jogo sujo da banda podre do Agronegócio, tentando usar indígenas e caboclos como bodes expiatórios da atividade que desde sempre mais desmata e mais queima na Amazônia. O que se espera do atual governo, é que seja retomado o processo de criação de PAEs e Resex, e implementadas politicas públicas efetivas de viabilização da vida nesses territórios protegidos pelas comunidades extrativistas.