Por Fábio Pontes, em O Varadouro
Com rondonização, mercado de carbono e manejo madeireiro intensificam disputa e conflitos pela terra no Acre.
Relatório sobre conflitos no campo divulgado no Dia da Amazônia (05/09) pela CPT mostra que, além de nova fronteira do desmatamento, a região Amacro é também palco do aumento de casos na disputa por terras da Amazônia, sobretudo pelo avanço da grilagem. Interesse de fazendeiros pelo mercado de carbono e manejo madeireiro também agravam o cenário.
Se entre o final da década de 1970 e a de 1980 os compradores de grandes porções de terra na Amazônia vindos do centro-sul do país – aqui genericamente chamados de “paulistas” – eram os responsáveis por gerar os conflitos que resultaram na expulsão dos seringueiros de suas colocações e na morte de lideranças dos trabalhadores rurais (como Wilson Pinheiro e Chico Mendes), agora a batalha pela terra tem outros protagonistas. Saem figuras humanas clássicas, e entra o interesse do capital em ganhar muito dinheiro em nome da sustentabilidade da floresta, por meio do mercado de carbono e de planos de manejo madeireiro. É o que se pode definir como os “novos paulistas” alimentando a velha indústria da grilagem na Amazônia.
Essa é a análise a ser feita a partir da apresentação do relatório Conflitos no Campo Brasil 2022, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os dados foram apresentados durante evento na manhã de ontem, 05/09, o Dia da Amazônia, em Rio Branco. O estudo apresenta resultados preocupantes sobre o recrudescimento dos conflitos pela terra no Acre, após certo período de “pacificação” entre o começo da década de 1990 e o fim da segunda década dos anos 2000.
Apaziguamento obtido com a consolidação de uma reforma agrária defendida por lideranças como Chico Mendes, que resultou na criação das reservas extrativistas e os projetos de assentamento. De uma certa forma, pod-ese definir essa pacificação como um dos legados da luta do líder seringueiro de Xapuri, agora bastante ameaçado.
O retorno da velha direita acreana ao poder, a partir das eleições de 2018, com a fragilização das políticas de proteção ambiental e social das populações tradicionais, levou o estado a ser “invadido” pela mesma indústria da grilagem que há décadas gera conflitos e mortes no vizinho estado de Rondônia. Este processo é definido como a rondonização do Acre, ideia defendida pelo grupo político que hoje governa o estado como o melhor caminho para o desenvolvimento econômico. O agronegócio, na concepção deles, deve ser o condutor deste “progresso”.
A unificação da agenda bolsonarista dos governadores do Amazonas, Wilson Lima (União), do Acre, Gladson Cameli (PP), e de Rondônia, coronel Marcos Rocha (União), por meio de criação da zona Amacro, resultou não apenas na explosão de crimes ambientais contra a floresta, como também nos registros de conflitos no campo.
De acordo com a CPT, os municípios que formam a Amacro registraram 150 casos de conflitos pela terra ao longo de 2022. O número representa mais da metade do total de 290 ocorrências detectadas nos três estados. Além de se consolidar como a nova fronteira do desmatamento da Amazônia, a “zona de desenvolvimento sustentável” Amacro é exposta, a partir do estudo da CPT, como uma das regiões mais perigosas para a posse da terra por pequenos agricultores e populações tradicionais – incluindo as indígenas.
“O avanço da fronteira do agronegócio tem como consequência o avanço dos crimes contra o meio ambiente, a violência contra as populações tradicionais “, disse o professor Afonso Chagas, da Universidade Federal de Rondônia (Unir), durante o evento da CPT. De acordo com ele, a chamada rondonização do Acre ou a matogossozição de Rondônia nas décadas passadas antecede o que ele classifica como uma “desamonização” – ou seja, a destruição da Amazônia.
Uma terra de ninguém – só dos grileiros
O sul do Amazonas, com especial atenção para Boca do Acre e Lábrea, estão entre os mais impactados por esse processo. A proximidade destes municípios com as divisas do Acre e de Rondônia contribui para o aumento dos conflitos agrários.
Ao mesmo tempo, a distância em relação ao centro do poder amazonense, na capital Manaus, deixa suas populações tradicionais ainda mais vulneráveis às ações dos grileiros – ações estas muitas das vezes violentas, com base na ameaça, intimidação, corrupção das forças policiais. Muitos deste agentes, denunciam lideranças camponesas da região, fazem o trabalho de “jagunços” dos grandes latifúndios.
Por conta do isolamento e das distâncias, as instituições federais ficam num jogo de empurra-empurra. Uma superintendência da Polícia Federal, por exemplo, passa para a de outro estado a responsabilidade por investigar denúncias de grilagem e violações. Assim, o sul do Amazonas vira uma “terra de ninguém”. Todavia, a região foi alvo de operações policiais importantes nos últimos meses, coibindo o roubo de terras públicas dentro de unidades de conservação.
Já no Acre, os conflitos mais comuns são com os “novos paulistas” e sua roupagem ecológica. Para ampliar os lucros a partir das áreas de suas reservas legais, os fazendeiros entram em conflito com os pequenos agricultores, posseiros e seringueiros que vivem no entorno das propriedades – ou latifúndios.
Quando não recorrem à intimidação, apelam à Justiça com mandados de reintegração de posse para expulsar as famílias que habitam as áreas há gerações. Como argumento, os acusam de estarem destruindo a floresta para ampliar os roçados, colocando em risco seus projetos de venda de carbono na bolsa de valores, ou madeiras nobres para as madeireiras, que hoje enviam mais de 90% da produção para o mercado internacional.
É o que acontece com uma área localizada em Xapuri, entre a Resex Chico Mendes e a reserva legal da antiga Fazenda Bordon, palco de muitos “empates” de seringueiros contra a transformação da Amazônia em pasto. Os atuais donos da propriedade entraram com ação na comarca de Xapuri para expulsar famílias de extrativistas que há décadas vivem naquelas colocações. Eles são vistos como um atrapalho do fazendeiro para implementar o projeto de crédito de carbono.
Estes dois casos – do mercado de carbono e de manejo madeireiro – são vistos pelas entidades de defesa do homem e da mulher do campo como os principais indutores dos conflitos por terra no Acre. Paralelo a isso, a chegada de pessoas, em maior parte de Rondônia, em busca de terra farta e barata tem feito dos municípios localizados ao longo da BR-364, entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, outro palco de conflitos – e de danos ambientais. Não por coincidência, Feijó, Tarauacá, Sena Madureira e Manoel Urbano passaram a registrar níveis recordes de desmatamento e queimadas entre 2019 e 2022.
De acordo com a CPT, 2019 registrou o ápice de conflitos por terra no Acre: 90. Depois, reduziu-se para 58, voltou a crescer em 2021, com 64 ocorrências, e ficou em 59 no ano passado. Dentro do trio Amacro é o menor número. O Amazonas registrou 152 casos, e Rondônia 78.
Quando se avalia os impactos destes conflitos na vida das pessoas, os números são preocupantes. Apenas no Acre, mostra o relatório da CPT, 8.345 famílias sofreram algum tipo de vulnerabilidade ao longo de 2022 com as disputas no campo.
E elas afetaram não só os tradicionais agricultores ou camponeses, os mais expostos, cuja posse não seja reconhecida pelos órgãos oficiais. A pastoral da terra identificou conflitos que ocasionaram impactos para as populações indígenas e extrativistas. Mesmo com suas terras protegidas por lei, elas não ficam livres da indústria da grilagem.
É interessante observar como os conflitos agrários voltam a ser motivo de atenção e preocupação no Acre e no sul da Amazônia como um todo. Foi no final da década de 1970 que Varadouro acompanhou de perto todo este cenário conflituoso nesta mesma região denunciada pela CPT. Quase 50 anos depois, o que o jornal classificou como a bovinização do Acre, representada pela transformação da floresta em pasto para o gado, volta a ocorrer – agora incorporado, supostamente, por uma “agenda verde”, ou “capital verde”.
Famílias de seringueiros, posseiros, extrativistas, indígenas, camponeses e pequenos agricultores continuam em extrema vulnerabilidade no campo e na floresta. Que a mudança de projeto político de governo no plano federal possa assegurar uma nova pacificação para quem precisa viver da terra.
Este conteúdo foi publicado originalmente no jornal O Varadouro, acesse o conteúdo AQUI.