Seringueira sendo sangrada. Foto: Ahmad Jarrah

O sonho de Chico Mendes para a Amazônia ainda é possível?

Publicado originalmente na PlenaMata, por Bruna Obadowski e Ahmad Jarrah

Após três décadas, moradores da Resex Chico Mendes lutam para manter o perfil extrativista e o legado do seringueiro assassinado por defender a floresta em pé. A área está próxima a extensas propriedades rurais, onde a pecuária é a atividade central e exerce uma forte pressão nas comunidades locais.

Trinta e cinco anos após o assassinato do líder seringueiro e ambientalista Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, idealizador das reservas extrativistas no Brasil e no mundo, um de seus maiores legados encontra-se sob ameaça. Com quase um milhão de hectares, localizada no Acre próxima à fronteira com o Peru e a Bolívia, a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes sofre com a disputa entre dois modelos de desenvolvimento, um duelo que também põe em risco o futuro da humanidade por catalisar as mudanças climáticas, um dos grandes desafios globais.

“A luta de Chico Mendes foi muito importante, mas, hoje, a gente está num período no qual se definirá se isso vai pra frente ou vai morrer aqui, porque estamos num período de provarmos se as ideias dele (Chico Mendes) deram certo”, relata André Maciel, jovem seringueiro de 21 anos, ao analisar as incertezas que pairam sobre a Resex onde nasceu e vive.

A perpetuação das ameaças aumenta as incertezas. Segundo dados de agosto de 2021 a julho de 2022 do Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Resex Chico Mendes já perdeu quase 5% de suas matas.

Idealizada para que seus moradores vivessem da extração da borracha da seringueira nativa, da castanha-do-Brasil e outros produtos que não demandam a necessidade de desmatamento, na prática, a realidade é diferente. A reserva figurou entre as unidades de conservação mais ameaçadas e pressionadas pelo desmatamento em toda a Amazônia, entre outubro e dezembro do ano passado, de acordo com dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). A paisagem que marca o limite da reserva nos municípios de Assis Brasil e Xapuri ilustra o que mostram os números: o desmatamento está cada vez mais perto.

Pecuária: principal vetor da destruição 

A ameaça não só ocorre apenas dentro das Resex, mas em toda a floresta. Em 2021, o Brasil foi o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima. Já de acordo com levantamento do Think Tank internacional Carbon Brief, com o aumento do desmatamento e queimadas, o Brasil voltou a ocupar a quarta posição no ranking de emissões, posição em que já esteve nos anos de 2004 e 2005.

Os dados do SEEG mostram que o desmatamento responde pela maior parte das emissões brasileiras de gases que aquecem o planeta. O relatório mostrou que o Brasil emitiu 2,4 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa em 2021, o que representa um aumento de 12,5% em relação a 2020, quando o país havia emitido 2,1 bilhões de toneladas. A alta do desmatamento, sobretudo na Amazônia, foi a principal responsável pelo aumento de emissões.

Em 2021, a poluição climática causada pelas mudanças de uso da terra subiu 18,5%. A destruição dos biomas brasileiros emitiu 1,19 bilhão de toneladas brutas de CO2 equivalente (GtCO2e) no ano retrasado — mais do que o Japão inteiro —, contra 1 bilhão de toneladas em 2020Com a mudança de governo no Brasil a partir de janeiro de 2023 e o retorno de Marina Silva, ex-companheira de atuação no Acre de Chico Mendes, ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), a expectativa é que o combate ao desmatamento e os investimentos em atividades que não dependam do corte da floresta sejam retomados, reduzindo a fatia nacional com a crise climática global.

Alcançar esse futuro ideal também era um sonho de Chico Mendes, quando este redigiu a célebre “Carta aos jovens do futuro”. À época, a atual crise do clima não estava na agenda global e a atual geração de moradores da Resex, como André Maciel, não havia sequer nascido. Naquele período, quem seguia Chico era o pai de André, Anacleto Maciel – um seringueiro e poeta reconhecido na região, e seu avô, que figurava entre os primeiros presidentes do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Xapuri.

Na carta, Chico Mendes vislumbrou um mundo alternativo, com conflitos por terras e ambientais superados. Passados 35 anos de seu assassinato, esse enredo parece cada vez mais distante, mas a esperança ainda perdura para jovens como André. Consciente dos gargalos e dificuldades, ele enxerga oportunidades em todos os desafios. “Se a gente não fizer com que o modelo funcione de fato para que as pessoas lá dentro da unidade tenham uma qualidade de vida melhor e efetiva também financeiramente, a gente fica vulnerável aos exploradores. Então, esse é o momento da gente reafirmar que o modelo dá certo. E dá certo. Claro que precisa de melhorias, porque nada é perfeito”, afirma André.

André Maciel, jovem seingueiro. Foto: Ahmad Jarrah

A esperança ainda é presente também entre os mais experientes. Raimundo Mendes de Barros, o “Raimundão”, como é mais conhecido o extrativista de 78 anos, ativista ambiental e primo de Chico Mendes, concorda com o jovem André.

Raimundão recebeu a equipe de reportagem em sua colocação (lotes dentro das Resex), no Seringal Dois Irmãos, em Xapuri, onde mora com sua família há quatro décadas. “Aqui começa o meu seringal!”, conta, ao apontar para um estreito caminho na floresta. No seu quintal, a vegetação nativa garante o sustento de sua família, com a extração do látex da borracha e da coleta da castanha, ao mesmo tempo em que contribui para a preservação da Amazônia.

Para o extrativista, o desmatamento na Resex Chico Mendes tem raiz na “sanha do latifúndio”, que não se satisfez com a floresta nos limites externos à reserva, e agora inclina sua força para dentro da unidade de conservação, pressionando e assediando os seus moradores.

Raimundo avalia que a iniciativa de pressionar a floresta é organizada e não se restringe somente à questão dos ganhos econômicos. “A intenção também é desmoralizar o trabalho dos ambientalistas, dos defensores da causa dos povos da floresta. Então, acabar com a reserva Chico Mendes é desmoralizar mais uma vez o nome do Chico, a figura do Chico e dizer para essa população: ‘Eu não disse que vocês não iam chegar a lugar nenhum?’”, declara Raimundão.

Práticas irregulares como o arrendamento, venda irregular de lotes e a derrubada da floresta para a formação de pasto são os principais vetores para o aumento do desmatamento na unidade de conservação nos últimos anos, segundo o Ministério do Meio Ambiente.

De todas as ameaças contra a Amazônia, a transformação de floresta em pastagens é a pior, segundo dados do MapBiomas, respondendo por até 80% do que foi degradado até 2020, com 150 milhões de hectares. Isso tanto em áreas protegidas como a Resex Chico Mendes quanto em áreas privadas ou terras devolutas, que são áreas públicas sem destinação pelo poder público e não integraram patrimônio de proprietários particulares, mesmo que ocupadas irregularmente.

Boi na “meia” da floresta

A Reserva Chico Mendes encontra-se cercada por extensas propriedades rurais voltadas principalmente à pecuária, e que exercem uma intensa pressão sobre a região. Diante das flutuações dos ganhos da economia extrativista, especialmente com a castanha, muitos moradores da Resex acabam cedendo à proposta de grandes fazendeiros do entorno e derrubam a floresta para a pastagem, adotando a criação de gado de forma compartilhada, ou na prática conhecida como “Boi na Meia”, que induz mais ainda o aumento de rebanhos dentro da unidade de conservação, além do limite aceito para essa modalidade de uso.

No modo “Boi na meia”, os responsáveis pelo pasto são moradores da reserva, que arrendam a terra e ficam com a primeira cria como pagamento. As próximas crias são divididas, sendo metade para eles e a outra metade para o proprietário do gado (pecuarista). O bezerro que nasce dentro da reserva depois é vendido para o próprio fazendeiro que introduziu o gado de forma ilegal na região. Este, por sua vez, revende de forma “legalizada” fora da Resex, como se esse bezerro nunca tivesse pastado dentro de uma unidade de conservação da Amazônia.

A criação de gado dentro da reserva extrativista não é uma atividade ilegal, desde que respeite o Plano de Utilização e o Plano de Manejo, principal regulamento das reservas extrativistas. Segundo o plano, publicado pela portaria nº 60 em 2008 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), as atividades complementares poderão ocupar 10% da área, não ultrapassando 30 hectares. Desta área, até a metade pode ser destinada à criação de gado.

No fim das contas, são até 15 hectares de cada colocação que podem ser usados para criação de gado, colocando a quantidade de animais nessas áreas como uma grande polêmica, já que a quantidade não é levada em consideração e sim a área ocupada.

A antropóloga Mary Allegretti, do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), afirma que a pecuária está presente como atividade na região, no entanto, nos últimos anos se tornou um problema acentuado. “O que aconteceu foi que a expansão da pecuária no entorno da Resex gerou um modelo em que os fazendeiros fazem e eles [moradores] colocam”, explica. “Eles fazem uma parceria em que algumas famílias de dentro (da reserva) criam e depois vendem para o próprio fazendeiro, que está no limite da reserva. Então, tem muita coisa errada que precisa ser revista. Digamos que isso existia numa escala pequena e nesses últimos anos a questão se transformou num problema crítico”, alerta.

Mary Allegretti, do IEA. Foto: Ahmad Jarrah

Mesmo diante do problema, a antropóloga acredita ser possível criar gado dentro da reserva, mas mudando esse modelo. “Você pode continuar criando gado numa escala pequena junto com outras atividades, como hoje já tem modelos bem sustentáveis para fazer isso”, defende. A criação de gado de forma sustentável, como sugere a antropóloga, pode garantir a continuidade do modo de viver dos extrativistas. O próprio Raimundão cria animais para abate e, com isso, para o complemento da cesta de produtos. Ele defende que de forma controlada é possível ter uma pecuária sustentável por meio do sistema agrossilvopastoril.

“A gente pode ter um capim aqui na reserva, desde que seja o complemento da cesta de produtos sem agredir a mata nativa, fazer destruição. É um exemplo. Você descobre uma área, dois, três hectares, planta mandioca, planta abacaxi nos primeiros anos, e três, quatro anos depois, você vai botando a castanha, a seringa, e depois coloca o capim”, relata Raimundão, ao mostrar uma área em sua colocação destinada a esse modelo.

Porém, para acessar programas de incentivo à implementação de sistemas agroflorestais ou modelos sustentáveis de produção, recuperar áreas degradadas, ou mesmo para acessar políticas públicas, como de saúde e previdência, os moradores da Resex precisam apresentar documentação regularizada de sua ocupação. Essa exigência se tornou um gargalo, ao mesmo tempo em que facilita a entrada de exploradores.

Cidadania invisível 

Somando às dificuldades enfrentadas na Resex Chico Mendes, uma lacuna perdura há anos e ganha protagonismo quando o assunto é regularização: a ausência do “Perfil da Família Beneficiária”. Em dezembro de 2013, foi publicada uma Instrução Normativa do ICMbio com os procedimentos para a elaboração e homologação desse perfil de famílias beneficiárias em reservas extrativistas, o que poderia ter sido o início da solução para essa questão.

Um dos fatores que explicam a questão da ausência de perfil é que cada vez mais pessoas de outras regiões do país têm migrado para dentro das Resex da Amazônia. De acordo com moradores da área ouvidos pela reportagem, apesar de desejarem viver na região, estes desconhecem o modo de viver da floresta, e as práticas de manejo da seringa, castanha e outras espécies da floresta. Essas pessoas acabam também sendo vetores da entrada de outras práticas e atividades econômicas na região, como a pecuária.

Em maio, foi realizado um debate sobre a definição do perfil de famílias beneficiárias da Resex durante a Reunião Ordinária do Conselho Deliberativo da Resex Chico Mendes, em Rio Branco, capital do Acre. O encontro contou com a participação de dezenas de conselheiros e do ICMBio, onde atualmente o processo se encontra em andamento. Mas, mesmo após três décadas da criação, esse perfil – essencial para determinar quais famílias podem ou não ser contempladas com benefícios na unidade de conservação – ainda não existe.

Para Raimundão, com a definição do perfil do beneficiário, aqueles que não se enquadrarem por exercerem atividades e ocupações irregulares serão obrigados a deixar a reserva. “Se você não tem o perfil definido, qual critério eu vou adotar para dizer que o Chico pode e o José não pode?”, questiona.

No entanto, o perfil não é o único problema burocrático. Wendel Silva Araújo, 28 anos, presidente da  Associação dos Moradores e Produtores da Resex Chico Mendes em Assis Brasil e diretor do Coletivo de Jovens Varadouro, ao lado de André, destaca outra situação angustiante: a ausência de um cadastro oficial e a desatualização da lista de moradores da Resex junto ao ICMBio.

Wendel e família em sua casa no município de Assis Brasil. Foto: Ahmad Jarrah

Mesmo tendo nascido na reserva extrativista, seu nome não consta na lista de moradores. Essa lista, criada a partir de um censo realizado pelo ICMBio em 2009, é fundamental para o acesso das famílias às políticas públicas, incluindo o “Bolsa Verde”.

A mãe de Wendel, que enfrenta problemas de saúde mental, também não consta na lista, o que a impede de acessar os documentos necessários para receber benefícios sociais. “Somos invisíveis”, desabafa ao mencionar a negligência com que essa questão tem sido tratada ao longo desses anos. Nesse caso, existe uma contradição: pessoas que não têm laços sociais e históricos com a região estão no cadastro, mas sem perfil. E, quem vive ali há gerações e tem o saber de como viver da floresta em pé, acabam relegados à invisibilidade.

A responsabilidade do mercado 

“Se não fosse a Vert, acho que não teríamos nem mais floresta em pé”. Assim descreve José de Araújo, presidente da Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Cooperacre) ao comentar uma parceria na região entre as cooperativas e a empresa VEJA/Vert, uma fabricante francesa de tênis ecológicos.

A Vert possui contrato com as cooperativas da Resex Chico Mendes para a compra de 100% do látex da reserva, produzido por 1.292 famílias. Do Seringal Dois Irmãos, o presidente da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (Cooperxapuri), Sebastião Nascimento de Aquino, o “Tião” como é conhecido, conta que essa parceria proporciona benefícios significativos aos extrativistas, que recebem um preço melhor pelo látex, chegando a R$ 14 reais o quilo final, quase o dobro do valor praticado no mercado tradicional.

“Hoje o nosso principal produto é a borracha nativa, vendemos tudo que coletamos para a produção de sapatos para a Vert. Nós trabalhamos com a borracha CVP — Cernambi Virgem Prensado —, que é vendida em conjunto com as demais cooperativas locais”, esclarece Tião.

Sebastião Nascimento de Aquino, o “Tião”, presidente da Cooperxapuri. Foto: Ahmad Jarrah

Além do preço mais valorizado, a parceria com a Vert também oferece uma importante inovação: a consideração de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA). Essa nova abordagem valoriza o papel do seringueiro na manutenção da floresta em pé e reconhece a contribuição econômica que essa atividade sustentável proporciona. Tião destaca que a empresa leva em conta não apenas o aspecto comercial da transação, mas também o compromisso do seringueiro com boas práticas e a preservação do ecossistema amazônico.

Para se tornarem fornecedores da Vert, os seringueiros precisam cumprir critérios rigorosos, expressos em um Termo de Compromisso que abrange produção sustentável, origem controlada e comércio justo da borracha. São quatro critérios fundamentais: preservação da floresta, qualidade da borracha, cuidados com a seringueira e responsabilidade com a cooperativa e associação local.

Estima-se que, até o final de 2023, a Resex produza mais de 270 mil toneladas de látex 100% destinadas à empresa francesa. Promissor, esse modelo de apoio e comércio sustentável ainda é uma iniciativa tímida no mercado e os extrativistas defendem a ampliação, incluindo outros produtos como a castanha, sempre com a compensação pelos serviços ambientais e subsídio, para se tornar viável economicamente para as famílias.

Para Luiz Antonio Brasi, coordenador da Rede Origens Brasil no Imaflora, o mercado precisa investir nos produtos que colaboram com a manutenção da floresta em pé, pagando um preço justo pelos serviços ambientais.

Luiz defende que a ampliação dessas parcerias são cruciais para o futuro da floresta amazônica e para a manutenção do equilíbrio entre conservação ambiental e desenvolvimento econômico. “Essas populações estão mantendo a floresta em pé e extraindo os produtos da floresta, conseguindo aliar produção com conservação e contribuem com a estabilidade climática, que hoje é um desafio global”, enfatiza.

Angela Mendes, filha de Chico Mendes, ativista ambiental e presidente do Comitê Chico Mendes, também concorda com a contribuição das populações extrativistas para preservação das florestas, mas enfatiza que elas precisam de mais apoio e de políticas públicas efetivas.

“Não é justo que só quem está lá no território lute sozinho”, defende Angela. Para ela, outros agentes devem se engajar também na valorização econômica do extrativismo em consonância com a necessidade de uma maior responsabilidade com o consumo por parte de empresas e países. “Quem compra carne, quem compra madeira, soja, qual é a responsabilidade com essa comercialização, com a origem desses produtos? Pode estar tendo origem em conflito, em violência e violação de direitos humanos”, questiona. Angela entende que ao interromper a cadeia de consumo, enfraquece o fomento às atividades criminosas e ilegais.

“A gente está vivendo os tempos dos extremos climáticos e as reservas extrativistas se apresentam como parte dessas soluções. Se não fosse a reserva extrativista, a gente não tinha um milhão de hectares de floresta onde hoje é a [reserva] Chico Mendes”, conclui.

Angela Mendes, presidente do Comitê Chico Mendes. Foto: Ahmad Jarrah

Apesar de todos os desafios e do alerta com as ameaças, o modelo das Resex ainda são os mais bem-sucedidos para proteger a Amazônia no Brasil e no mundo. Segundo dados do relatório “The State of the World’s Forests”, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), de 2022, quase metade das florestas e áreas agrícolas do mundo (4,35 bilhões de hectares) são ocupadas por populações locais e povos indígenas. Os dados do desmatamento, menores nessas áreas, também comprovam essa eficácia de proteção.

Segundo o Mapbiomas, o desmatamento nas propriedades privadas no país chegou em 2022 a 56,8%. Desse total, mais da metade (58%) fica na Amazônia. Já nas unidades de conservação de uso sustentável (como as Resex), o índice fica em apenas 3,1%. O desafio é dar escala ao modelo atual e torná-lo atrativo para as novas gerações.

Ao ser questionado sobre a situação atual da Resex Chico Mendes, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima respondeu aos questionamentos da reportagem em nota, atribuindo grande parte dos conflitos atuais a gestões anteriores, como a do presidente Jair Bolsonaro, que manteve Ricardo Salles à frente do MMA entre 2019 e 2021.

“A prática de arrendamento, a venda irregular de moradias e a derrubada da floresta para a formação de pastos são os principais vetores para o aumento do desmatamento na unidade de conservação nos últimos anos. Isso ocorreu paralelamente ao desmonte dos órgãos ambientais, à coação de servidores, às ameaças contra lideranças comunitárias e a campanhas contra a reserva extrativista estimuladas pela gestão anterior”, afirmou a assessoria do ministério.  Por mais que durante o governo Bolsonaro tenham tido aumento da devastação da Amazônia, os problemas de perfil extrativista e a presença massiva de gado na Resex começaram antes da sua gestão.

Segundo o governo federal, a fiscalização será a principal medida para retomada do controle nas unidades de conservação da Amazônia. “Em 2023, a fiscalização foi retomada e fortalecida, assim como o diálogo com as comunidades. A Resex Chico Mendes está entre as unidades de conservação prioritárias para a proteção no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).  O MMA atua na fiscalização ambiental e dos financiadores de práticas ilícitas, na retomada e reforço dos instrumentos de gestão e no fortalecimento da economia da sociobiodiversidade”, afirma a nota do ministério.

Questionado pela reportagem sobre o “perfil extrativista” para a Resex Chico Mendes, o MMA argumenta que esta proposta já foi elaborada e está em discussão. De acordo com a assessoria da pasta, ela está passando por ajustes e será submetida à aprovação do conselho deliberativo da reserva e, em seguida, publicada no Diário Oficial. Ainda de acordo com o ministério, paralelamente à identificação do perfil, está em curso a atualização da lista de moradores, com previsão de conclusão ainda neste ano. Esta é uma chance de jovens como Wendel serem reconhecidos como moradores da Resex.

Os jovens e o futuro

O Brasil possui mais de 20 milhões de hectares de terra, água e floresta na mão das populações tradicionais da Amazônia, graças ao legado de Chico Mendes.  Segundo Júlio Barbosa, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), entidade fundada por Chico Mendes, antes de ser assassinado em 1988 por fazendeiros do Acre, “grande parte destas florestas são muito mais protegidas do que em propriedades privadas tradicionais”, completa.  Para Júlio, os extrativistas precisam urgentemente de apoio e de reconhecimento – inclusive financeiro – pelos serviços ambientais que prestam.

Mary Allegretti defende que o governo também deve investir no potencial das reservas extrativistas para não comprometê-las no futuro. “Dentro do governo federal, no ICMBio, há um peso enorme para as unidades de proteção integral (como os Parques). Elas são importantes, ninguém questiona isso. Mas, as unidades de uso sustentável têm uma parcela menor do orçamento, uma parcela menor de equipe técnica, uma parcela menor de importância no processo de gestão do Icmbio, e isso é uma distorção que hoje coloca em xeque o futuro das reservas”, explica. Para a antropóloga, no passado havia um equilíbrio, mas progressivamente foi havendo um distanciamento, que ela avalia como crítico.

Para ter mais voz participativa, a juventude da reserva, como André, Wendel e outros jovens, incluíram o Coletivo Varadouro, do qual fazem parte, como membro do Conselho Deliberativo da Resex. “Isso nos dará um espaço institucional e decisório sobre o futuro”, explica André.

Tal qual seus pais, que um dia participaram da União dos Povos da Floresta – que reuniu seringueiros, extrativistas, quebradeiras de coco e povos indígenas – fomentando um modelo que revolucionou a proteção Amazônia, os jovens hoje lutam por condições melhores para que possam de fato um dia alcançarem o ideal preconizado por Chico Mendes em larga escala.

Se forem vitoriosos, estarão salvando não apenas algumas unidades de conservação no Brasil, mas contribuindo para o futuro do planeta, tal qual um dia refletiu o próprio Chico Mendes: “No começo pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade”, resumiu o ativista, que segue inspirando as atuais gerações.


Esta reportagem foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network e publicada por A Lente em parceria com a InfoAmazonia e o projeto PlenaMata.

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