Desde a década passada, o Acre enfrenta eventos climáticos cada vez mais extremos que colocam em risco a sobrevivência de suas populações tradicionais (Foto: Juan Diaz)

Sofrimento será cada vez maior, se não houver união no enfrentamento à crise climática

O pesquisador da Embrapa Eufran Amaral teve papel essencial na construção das políticas de pagamento por serviços ambientais do estado, incluindo o REM KFW. Em entrevista, ele analisa os desafios do estado no enfrentamento dos impactos ocasionados pela crise climática, bem como os potenciais com projetos de REDD. “O tempo não nos dá mais tempo”, ele alerta.

por Montezuma Cruz, dos varadouros de Porto Velho e Rio Branco

Para O Varadouro

Acre e Rondônia devem buscar o possível e o impossível para reduzir os efeitos e as causas das mudanças climáticas em 2024. Uma década de calor excessivo fez a população urbana e da floresta viver situações insuportáveis. Até hoje, todos sofrem. O aumento de temperaturas deve se repetir. A pedido do Varadouro, o pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Eufran Ferreira do Amaral, graduado em agronomia pela Universidade Federal do Acre (Ufac), especialista em planejamento agrícola, fertilidade e manejo de solos tropicais e doutor em agronomia (Solos e Nutrição de Plantas) analisa o momento.

Ex-secretário estadual do Meio Ambiente durante o governo Binho Marques (2007-2010), ele alerta para uma realidade: “O debate é inadiável, mas o crédito de carbono e as mudanças climáticas devem ser analisados conjuntamente com as estatísticas da pobreza no Acre e na Amazônia.”

No ranking da extrema pobreza em 2023, o Amapá esteve com 4%; Tocantins, 4,4%; Rondônia, 4,6%; Pará, 5,7%; Amazonas, 6,9%; Roraima, 7,4%; e o Acre na ponta, com 13,2% – mostra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O índice nacional foi de 4,4%. Os oito estados mais bem situados nessa classificação são: Rio Grande do Sul, com 1,3%; Goiás, 1,3%; Santa Catarina, 1,4%; Distrito Federal, 1,9%; Mato Grosso do Sul, 2,0%; Minas Gerais, São Paulo e Paraná, 2,2%.

Uma regulação efetiva do mercado de carbono pode render ao Brasil US$ 120 bilhões, ou R$ 577,2 bilhões até 2030, segundo cálculo da Câmara de Comércio Internacional (ICC Brasil). O projeto de lei 2.148/2015 está em discussão no Senado Federal. O texto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados em dezembro.

“Mesmo com um governo federal recuperando a economia nacional, redistribuindo renda com a retomada de programas sociais e fortalecendo o investimento público com o PAC, Plano Safra e outros, o Acre é vítima de um governo [local] incapaz de fazer os investimentos necessários para que nossa economia reaja”, analisa Amaral.

Segundo ele, durante o governo de Binho Marques foi criado o Programa de Certificação da Propriedade Rural. Já em 2010, o debate global amadureceu propostas sobre mercados de carbono, notadamente aquelas vinculadas às Conferências da ONU sobre mudanças climáticas, as COPs.

Nascido em Tarauacá, Eufran do Amaral chama a atenção para a realidade atual, sugerindo olhares sobre ribeirinhos, seringueiros, indígenas e produtores familiares que em 2023 sofreram com o ano mais quente do planeta e, em 2024, sofrerão situação climáticas mais agudas, conforme previsões já divulgadas.

A seguir, a entrevista do presquisador ao Varadouro:

Varadouro: O Acre pode competir no mercado internacional do crédito de carbono?

Eufran – Há tempos o estado vem legislando sobre propostas específicas que contemplam políticas de serviços ambientais. O Acre tem um potencial enorme com relação à possibilidade de captação de recursos com serviços ambientais prestados e o carbono é um deles. O Sistema Estadual de Incentivos aos Serviços Ambientais (SISA), o primeiro sistema jurisdicional do país, foi criado em 2010, dez anos antes de o Brasil ter qualquer marco regulatório sobre este tema. O Programa de Certificação da Propriedade Rural, criado no governo Binho Marques, é um deles; o subsídio à produção da borracha natural por comunidades extrativistas, existente desde os anos de 1990, é outra.

V: Como funciona o SISA?

Eufran – No ano de 2010, as propostas amadureceram e se aprofundaram, em grande parte como decorrência das discussões globais sobre mercados de carbono, destacadamente aquelas vinculadas às Conferências da ONU como consequência do posicionamento dos membros da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas e o posterior reconhecimento da contribuição, para as mudanças climáticas, dos gases de efeito estufa decorrentes do desmatamento e degradação das florestas. Dessa maneira, potencializado pelo então promissor mercado de carbono, em razão dos debates com a sociedade acreana em audiências públicas e reuniões dos Conselhos de Meio Ambiente, de Florestas e de Desenvolvimento Rural Sustentável, optou-se pelo SISA para se construir toda a institucionalidade necessária a um amplo sistema de incentivo a serviços ambientais, com a ampliação de serviços e produtos ecossistêmicos*.

V: Implica dizer que o Acre fez a lição de casa bem antes…

Eufran – O alcance da lei é amplo, vai muito além do carbono. Concentra uma diversidade de produtos e serviços ambientais dentro de uma mesma estrutura, compartilhando princípios, diretrizes e instrumentos de planejamento, gestão, de controle, execução econômica e financeira, apoiados por um fundo contábil, por um Instituto e uma agência com uma governança robusta. A criação do SISA valorizou o ativo ambiental do estado do Acre de forma a viabilizá-lo como fonte de serviços ambientais para as atuais e futuras gerações das populações da Amazônia e do planeta. O Acre já está inserido na agenda global, desde muito tempo.

V: Os recentes eventos climáticos impõem apressar a disciplina e organização dessa política?

Eufran – Disso eu não tenho a menor dúvida, basta escutarmos os mais vulneráveis: ribeirinhos, seringueiros, indígenas, produtores familiares. Para 2024 temos previsões de situações climáticas mais agudas. Além disso, segundo a Organização Mundial de Meteorologia (WMO), a temperatura média global próxima à superfície em 2023 (até outubro) foi de 1,40 ± 0,12°C acima da média do período 1850–1900. Os dados revelaram que 2023 foi o ano mais quente no registo observacional de 174 anos; de 2015 a 2023 tivemos os nove anos mais quentes. E as temperaturas globais mensais foram recorde no oceano: de abril a setembro – e, começando um pouco mais tarde, na Terra – de julho a setembro, a média de dez anos de 2014 a 2023 (até outubro) é 1,19±0,12°C acima da média de 1850–1900, os dez anos mais quentes.

V: O que fazer, e como fazer?

Eufran – O tempo não nos dá mais tempo. As soluções precisam ser sinérgicas, transversais e com o envolvimento de todos: temos que ir além da visão fragmentada e entender que estamos todos conectados e vivemos no mesmo planeta. E se não começarmos a trabalhar de fato para reduzir os efeitos e as causas das mudanças já estabelecidas, só nos restará o sofrimento que já estamos passando, e com uma diferença: a intensidade será cada vez maior! O SISA é um instrumento que pode, em muito, auxiliar a sociedade acreana a enfrentar de forma adequada o desafio das mudanças climáticas com sabedoria e com melhoria da qualidade de vida para todos que aqui vivem.

V: A política de crédito de carbono incluirá de verdade indígenas, ribeirinhos e extrativistas?

Eufran – Há de se ressaltar que uma estratégia de serviços ambientais considera a cultura de onde se está trabalhando. Assim, o SISA decorre, dentre outras razões, da história do estado e de seu povo. Na verdade, na história do Acre existe uma íntima relação com a floresta, quer seja na sua formação histórica, ou na sua história contemporânea. Desta forma, um projeto de serviço ambiental participativo pressupõe o reconhecimento dos modos de vida e de uso da terra, pelas seguintes diretrizes: a) uso dos recursos naturais com responsabilidade e sabedoria; b) reconhecimento ao conhecimento e direitos dos povos indígenas, populações tradicionais e extrativistas bem como os direitos humanos; c) fortalecimento da identidade e respeito à diversidade cultural, combate à pobreza e elevação da qualidade de vida da população; d) utilização de incentivos econômicos objetivando o fortalecimento da economia de base florestal sustentável; e) transparência e participação social na formulação e execução de políticas públicas; f) repartição justa e equitativa dos benefícios econômicos e sociais oriundos das políticas públicas de desenvolvimento sustentável.

Princípios bem alinhados…

Eufran – São básicos, e vão garantir o alinhamento do Sistema com os rumos do desenvolvimento sustentável. A eles se agregam diretrizes consagradas nesta área, entre elas, a existência de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, entre os diferentes atores públicos e privados; a precaução para se evitar ou minimizar as causas das mudanças climáticas; e a transparência, eficiência e efetividade na administração dos recursos financeiros, com a participação social na formulação, gestão, monitoramento, avaliação e revisão do Sistema e seus programas.

V: Em alguns municípios do Acre e do Amazonas, fazendeiros sem a posse da terra reconhecida pelo Incra organizam sua própria polícia para expulsar de espaços na floresta famílias de Boca do Acre e Lábrea. No caso amazonense, o imbróglio está sob apreciação do Tribunal de Justiça daquele estado. Existe algum canal de diálogo com os atuais governos Wilson Lima (União) e Gladson Cameli (PP)?

Eufran – Os governantes atuais deveriam ter na estratégia da sinergia com suas políticas de desenvolvimento, uma vez que estamos falando de políticas locais que se conectam de forma harmônica e sinérgica com as políticas globais em prol de um planeta mais humano e resiliente. Uma estratégia de serviços ambientais pressupõe o reconhecimento de direitos. Por si só ela se constitui numa garantia de direitos, e pode atuar como forma de resolver conflitos territoriais, uma vez que a regularização fundiária é a base do reconhecimento da propriedade e dos direitos sobre ela, incluindo os serviços ambientais.

O QUE PROPÕE O SISA

Acesse a entrevista completa AQUI

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